26 de março de 2007

O menino


celeuma
onde se lê uma
leiam-se duas


p. leminski

Ele pode ter 19, 35, 46 ou 54 – não importa. Seu impasse é o mesmo. Está entre três chamados: o da Beleza, que é sua Arte; o da Mãe, que é de onde ele veio e sempre tende a voltar; e o da Mulher, que é para onde ele deseja ir e de quem costuma fugir. Seu movimento é um eterno vai-e-vem mental, confuso entre os estímulos diversos.

Para tornar-se um Homem, precisa, antes de mais nada, assegurar-se da sua Arte e reconhecer naquilo que o sustenta o seu grande e primeiro amor. A Arte nunca irá abandoná-lo. Propicia ao Enamorado um sentido ético para a jornada. Aí então, o menino confuso pode encontrar o fio de Ariadne, tomar seu Carro e colocar-se a caminho de uma solução. Fundamental, o primeiro passo.

Alguns, peterpânicos, nunca saem do impasse. Repetem-no por toda vida, mudando as personagens. Uma mulher, aquela que não ocupa seu desejo romântico, no papel de esteio. A Mãe, a Mestra, a Esposa (leia-se aí, alguns casamentos falidos em que a relação homem/mulher mais parece uma relação filho/mãe). Um pilar cimentado pela necessidade de alguma segurança. Laços de família ou laços religiosos bem atados. Religiosos sim, porque não raro os laços estão amarrados no sentimento de culpa com nó cego.

A Outra é aquela que ocupa o lugar de risco, a namorada-novidade sem a qual ele não vive - nem que seja num movimento imaginário. Sua idéia erotizada de mulher lhe traz a ilusão de movimento. E ele sempre troca de revistinha. Uma hora é loira, depois é morena. Desiste ao primeiro sinal de dificuldade ou encara a situação apenas como mais um desafio.

Para escapar do desespero inaugural o menino tem sua Arte, onde se lança com energia. Alguns mais, outros menos. Aos que a Arte não toca, ao invés do Anjo-Menino, têm o Anjo-Diabo. E ele os domina através de seu riso entorpecente. Aqueles que reconhecem sua Arte sobem o Himalaia, praticam esportes radicais, são admiráveis e admirados pelo seu trabalho mas ainda assim, continuam meninos. Alguns ainda, no melhor estilo “O Louco”, caminham pela borda de viadutos completamente ébrios.

Diz-se que depois de feita uma escolha, não se deve olhar para trás. Que o caminho rejeitado nunca mais deve ser sequer cogitado. Isso soa assustador: - Quer dizer então, que não vou poder voltar?
Camile Paglia, em Personas Sexuais, é de uma clareza impressionante quando diz que o homem obedece ao caminho ditado pela direção do falo – sempre em frente, quando rijo. Ao perder a rigidez, volta para o lugar de onde veio. O eterno vai-e-vem masculino, uma metáfora do ato sexual.

Essa trama que triangula o menino é onde algumas mulheres se enredam. Por não compreenderem o mecanismo, perdem o entendimento. E se o entendem intelectualmente, não significa que o tenham introjetado. A mulher, que até aí também é só uma menina, ou está ocupando temporariamente o lugar de uma menina, só se liberta da teia quando encontra um homem. Um homem que tenha superado o imperativo do impasse biológico. Que tenha assumido seu lugar no Carro, que saiba para onde se encaminha. Que possa granjear-lhe a admiração pela sua força de vontade.

Talvez essa força masculina tão desejada pelas mulheres precise ser, antes de tudo, encontrada dentro delas próprias. E que este encontro lhes permita, num segundo momento, reconhecer as diferenças entre um homem e um menino.

O menino, que num primeiro momento traz a graça de Eros, em pouco tempo mostra que não sabe para onde ir. Seria a confusão, admirável? E sobrevive o amor, ou mesmo a paixão, sem a admiração? Talvez a compaixão, não o amor. Ou talvez a ilusão de amor ainda perdure por um bom tempo na insistência da alma feminina e faça com que mulheres aparentemente maduras percam o sono. Não entendem “aonde ele quer chegar” por que ele mesmo não sabe “aonde” quer chegar. O menino emite sinais confusos. De um lado mostra que gosta, e é real. De outro, que não lhe interessa. E também é real. Sabedoria do cancioneiro popular: a verdade mesmo é que ele não sabe o que quer.
Um homem não anda em zigue-zagues. Coordena seus cavalos de força na direção da sua vontade mais íntima. Pelo menos, descobriu o que deseja e deixou de se iludir com o que “pensa” desejar. Pode optar também por eleger a sua dúvida como verdade. E aí, num sentido romântico, dá-se como perdido. Se for um forte, assumirá sua opção pela dúvida com todas as letras. Sem medo. E quem gostar dele, gostará mesmo assim. Um ato de coragem a que meninos não se dispõe.

Outro dia, comentei com um colega tarólogo sobre o excesso de questões que nos são trazidas com relação a assuntos sentimentais. Brinquei ao propor que criássemos uma tiragem complexa e destinada, exclusivamente, a responder a pergunta básica, feita por mulheres dos 15 aos 70: “Ele vai voltar pra mim”?

A tiragem complexa funcionaria como forma de reflexão e mais nada. Porque a resposta é sempre mesma:- Você está envolvida na rede do sexto arcano. Se a questão se referisse a um homem e não a um garoto, a pergunta não precisaria ser feita. Pois a mulher teria em mãos sua resposta clara e certa.


Um homem sabe para aonde está indo. Mesmo que seus cavalos de força oscilem vez ou outra, ele sempre lhe deixará muito clara sua direção.

Meninos são adoráveis. Mas apenas para as meninas.


Zoe de Camaris
madrugada de 25 de janeiro de 2007


Algumas observações:

1 - O teor do artigo supõe a existência de distinções básicas que pontuam o comportamento dos dois sexos. Não que a mulher não sofra com dilemas, obviamente, apenas os vivencia de forma diferente. A mulher não precisa afirmar que é mulher. O homem sofre essa pressão constantemente. Andrógino é o anjo.

2 - Tive um diálogo intenso sobre esse artigo com o tarólogo Marcelo Bueno, que me deu permissão para "editar" a nossa conversa. Isso será feito futuramente - é bacana ter um opinião masculina sobre o assunto. O ponto de vista do artigo é feminino - não pretendo ser científica, graças aos deuses.

21 de março de 2007

DIVINATRIX NO AR!




Divinatrix é o nome do site que estou lançando hoje no seguinte endereço: www.zoedecamaris.com. Visitem e coloquem aqui seus comentários!

abraços,
e um feliz começo de outono para todos nós,
Zoe

14 de março de 2007

Mais acordes de Violino



Há alguns detalhes que ficaram faltando na análise do Violino Vermelho, postagem anterior. Não satisfeita com a falta de informações sobre as fontes do Tarot apresentadas no filme, continuei na minha insana fúria de pesquisa.

Pois bem. Há 3 questões relevantes: 1) Não há nada na internet que revele o autor das cartas; 2) Há mudanças estruturais importantes em quatro das cinco imagens apresentadas se comparadas ao padrão marselhês; 3) E uma gafe - o Tarot não teria sido usado como prática divinatória na época em que o filme é ambientado.

Quanto ao primeiro tópico, agradeço a quem descobrir alguma coisa. Me parece que manter o autor no anonimato faz parte de uma aura de mistério intencionalmente provocada.

Com relação ao segundo ítem, percebe-se claramente que na lâmina do Diabo falta uma personagem, um dos "escravos". A vítima do encanto é uma só, Frederik Pope. Na carta da Justiça, há a inclusão de um navio e da bandeira chinesa, além de umas figurinhas que nos remetem aos cardeais presentes no desenho original do Papa, no Tarot marselhês. No Enforcado, falta meio cepo de uma das árvores laterais. Na carta da Morte, há uma cidade ao fundo. Observem as imagens no post anterior. Não consegui reproduções de qualidade mas é nítido que foram inspiradas no Tarot de Marselha.

Sobre a questão histórica, afirma-se que o Tarot não teria sido usado antes 1781, século XVIII, como prática divinatória. Eteilla teria sido o responsável pelo uso do Tarot para a adivinhação, alavancado por Court de Gébelin, em Monde primitif. O filme é ambientado em 1681, século XVII. Temos aí então um hiato de 100 anos. Como a história do Tarot não é minha melhor praia, recorri a quem saca do riscado - minha amiga Erika Hirs.

Erika me diz que as pesquisas mais recentes afirmam o mesmo - antes de 1781, nada de Tarot adivinhatório. O máximo que podia existir seria a leitura de uma carta, como na bibliomancia, mas nada de adivinhações estruturadas.

Antes disso, as cartas de Tarot eram utilizadas como jogo e também como método mnemônico, didático. O Sola Busca, por exemplo, um Tarot militar, era usado para ensinar a história de Roma. Também existiam os tarocchi appropriati, composições feitas com base nas cartas, como as de Boiardo. Se houve uso divinatório antes de Eteilla, é provável que uma carta fosse retirada do maço para conselhos, como a prática de abrir saltérios e bíblias.

Raciocino: quer dizer então que antes de 1770 existia uma prática correlata à "carta do dia"? Curioso. Se as cartas comuns já eram usadas para a adivinhação e se existia o costume de se tirar uma carta do Tarot como conselho, será mesmo que o Tarot não teria sido usado para adivinhação, mesmo que de forma não-sistematizada, antes de 1780?

Erika me responde que em 1519 existe o registro de um "ritual mágico" que Rolando - de Orlando Furioso - teria feito com cartas de baralho comuns para descobrir os inimigos de Carlos Magno. E no século XV, um livro alemão oracular que acompanhava as cartas comuns. Em 1540 sabe-se de um método de divinação usando só as cartas de moedas.

Eu e Erika concordamos que seria possível que as cartas de Tarot fossem utilizadas ainda antes de Eteilla. Mas como não há provas, considera-se que só após 1780 as cartas teriam sido realmente deitadas com intuito divinatório. Esperemos as novas descobertas.

Enquanto isso não acontece, é bom levar em consideração que uma obra de ficção, apesar do imperativo da verossimilhança, é uma obra de ficção. E a beleza do filme Violino Vermelho, na minha opinião, supera suas possíveis gafes.




Zoe de Camaris

psiu: se você quer conferir as informações, verifique os seguintes endereços

3 de março de 2007

TAROT E CINEMA (3)




O Violino Vermelho


Magia, Amor, Paixão, Arte, Imortalidade - temas que o filme O Violino Vermelho aborda com maestria, organizados através do sistema imagético mais bem articulado da humanidade: o Tarot.

Não sei quem forneceu consultoria - não consta dos créditos. Revirei a rede sem sucesso, nenhum tarólogo ligado à produção do filme. De qualquer forma, sendo o resultado de estudo e sensibilidade dos roteiristas, ou fruto de um trabalho especializado, é inegável que os arcanos maiores do Tarot foram utilizados com graça e pontualidade. Não se perderam no labirinto, na miríade de possibilidades interpretativas característica do sistema. Arriscaria dizer que é a primeira vez que o Tarot é tão bem aproveitado no cinema. Não raro, sua presença é estereotipada, de acordo com parte do senso comum. Em O Violino Vermelho é feito jus ao biscoito fino – o Tarot reencontra toda a sua versátil potência, o seu mistério e poder de sugestão nas mãos de Cesca, uma cozinheira do século XVII (1681).

Antes de entrar nas relações entre o Tarot e o filme, algumas questões:

Cesca ocupa na história o papel de Grã-Sacerdotisa, arcano II do Tarot. Sabedora das ervas, talismãs e feitiços, deita o Tarot para Anna, esposa do mestre luthier Nicolo Bussoti. Anna está grávida e, embora não demonstre a vitalidade típica do arcano III, encarna a figura da Imperatriz. A primeira cena em Cremona (Itália) mostra o encontro entre estas duas mulheres na cozinha. Cesca vem chegando da horta, enquanto Anna acaricia sua barriga e canta. A relação de reconhecimento e respeito é estabelecida imediatamente: Anna pergunta se poderia estar ali, já que a cozinha é parte de sua casa, ao que Cesca responde afirmativamente. Os limites e as diferenças entre a Sacerdotisa e a Imperatriz são resguardados. Cesca tem seu santuário, seu laboratório alquímico, enquanto Anna impera no resto da casa. E é este encontro entre as duas que irá delinear o transcorrer da trama.

Cesca impede que a Senhora coma o peixe que está sobre a mesa, dizendo que isso causará no seu filho lentidão na aprendizagem e lhe oferece amuletos sobre os quais ela e o marido deveriam cuspir. A força mágica da saliva é conhecida por bruxas e curandeiras. A energia incorreta é retirada do objeto. Sabe-se que, antigamente, uma cuspida de um superior ou um sábio era muito bem vista, os demônios sairiam da pessoa em questão. Toda secreção humana era tratada com muito respeito e sempre coberta ou enterrada – havia (e ainda há) a crença de que cabelos, unhas, saliva podem ser usadas por algum inimigo para prejudicar seu vizinho. No caso que o filme apresenta, Anna e seu marido deveriam cuspir sobre os amuletos para impregná-los com a sua força. É bom lembrar que um destes amuletos é uma chave - para facilitar a expulsão do bebê? Provavelmente. Todos os cuidados eram tomados em uma época em que o parto era um fator de alta mortalidade. No entanto, parece que o destino é mais forte e se faz valer. Contra ele, não há orações e nem amuletos realmente eficazes. O simbolismo da chave é forte e vastíssimo - uma das imagens do baralho de Madame Lenormand: abrir o que está fechado, iniciar processos e desvendar mistérios.

Anna pergunta a Cesca se ela ainda lê a sorte e pede que o faça para seu filho, ainda na barriga. Cesca diz que não, já que os humores da criança estavam misturados aos da mãe. Mas diz que lerá para Anna o seu futuro, desconsiderando o fato de que a mãe também teria seus humores ligados ao da criança.

Enquanto isso, Nicolo Bussoti faz seu melhor violino para oferecer ao primogênito que, cumprindo as expectativas do pai, seria um grande musicista.

O violino, verdadeiro protagonista da história, é que tem seu destino deslindado na sorte de Cesca. No objeto que se torna mágico, estarão misturados os humores da mãe e da criança e mais tarde saberemos a razão. Como não sou estraga-prazeres, peço aos que ainda não viram o filme que parem a leitura aqui e voltem depois de assistirem O Violino Vermelho.

A Senhora tem medo em saber o que o destino lhe reserva ao que Cesca responde: “É apenas o futuro”. Estende magnificamente seu baralho sobre a mesa tosca da cozinha, ao lado de seus amuletos, pedras, ossos e chaves, e pede que Anna tire 5 cartas. A Senhora questiona Cesca: -“E se o futuro for ruim?" Cesca diz então que “fingirá que que não viu”.

Aqui entramos em uma questão polêmica e que evoca uma discussão interminável sobre o destino e o livre-arbítrio, sobre o Tarot adivinhatório e o Tarot auto-reflexivo. Penso que estas formas de abordagem convivem e que só devemos “separá-las” no intuito de estudá-las, ou talvez, para delimitar posturas. As coisas acontecem, obviamente, ao mesmo tempo. Tendo-se em conta o abuso de charlatões em leituras de Tarot, que além de dizer asneiras ainda exploravam (exploram!) monetariamente suas vítimas, criou-se na contemporaneidade o que eu chamo de uma “ditadura do livre-arbítrio”. As coisas ficam sem graça, assim. Tudo é "holístico" e alternativo demais. Auto-reflexivo demais. Até parece que destino não faz parte do jogo como faz parte da vida. Há situações que podem ser modificadas, outras não. O Tarot não é apenas o “Espelho da Alma”, mas também o indicador de um futuro possível. Ora, não é preciso ser adivinho para perceber em alguém que se senta à sua frente para uma leitura, qual é a disposição interna para promover mudanças. O Tarot alerta, mas nem sempre é escutado.

Na minha prática a opto muitas vezes pelo uso da linguagem figurada para que a inserção criativa do consulente possa se estabelecer, para que ele possa compreender, à luz de suas experiências, as respostas do Tarot. Mas há coisas que não se explicam em se tratando de oráculos. Cesca lê o destino do violino. Cesca conta o filme através de suas cartas. E o que parece ser incompreensível no destino de uma mulher grávida, casada com um mestre luthier na Itália do século 18, passa a fazer todo sentido.
Se Gerd Zigler (sim, eu sei que isso é um anacronismo) deitasse as cartas para Anna Bussoti, o filme seria muito chato. A arte depende de máquinas do tempo.

Penso que não devemos, no papel de tarólogos, discutir com o Tarot. O consulente não nos procura para saber a nossa"opinião". Podemos sim entabular uma gentil conversação que sempre estará marcada pela configuração apresentada pelas cartas. É uma questão de honestidade ideológica respeitar e transmitir aquilo que o Tarot fala com a maior dose de isenção possível, dando espaço para que o processo intuitivo da leitura se estabeleça. O consulente não está à procura de um psicólogo quando busca o Tarot. Se ele deseja ou necessita de um psicólogo, um analista, irá atrás dele. O que não equivale a dizer que não seja de extrema valia para um tarólogo a sabedoria em lidar com o outro, qualidade que o estudo da Psicologia poderá (ou não) conferir àquele que se dispõe a ler as cartas. Sabemos que as cartomantes do passado e mesmo do presente representam este papel na vida de algumas pessoas. Mas estamos falando de Tarot e não de Psicologia.


Voltemos ao Violino.


A LUA - Cremona (Itália)
A História de Anna Bussotti

"Terá uma vida longa, cheia, rica... e eu vejo uma viagem. Vejo uma longa viagem”. Assim começa a predição de Cesca. A cena em que Anna e Nicolo estão na janela olhando para lua, converge simbolicamente ao arcano XVIII. A Lua no Tarot fala sobre uma viagem da Alma. Um caminho escuro e enevoado onde os limites estão borrados. Uma passagem difícil - perigosa, inclusive. Um enigma, um desafio. Anna pergunta ao marido se ele tem ciúmes da sua relação com a lua ao que o marido responde que não, que sabe que ela, Anna, sempre voltará para ele. A imagem lunar voltará a aparecer em diversos momentos cruciais do filme.

Mas Anna Bussoti não volta para Nicolo. Perde a criança no parto e falece. Há quatro personagens no quarto: O padre, o médico, a parteira e o astrólogo. E Cesca, a bruxa-cozinheira. Nada, nem ninguém, é mais forte que o destino. A predição de Cesca – que falou sobre vida longa - parece, num primeiro momento, não fazer nenhum sentido.

Há uma relação entre a lua e o sangue - as lágrimas da Lua que observamos no Arcano XVIII. Sangue que reencontramos nos panos que estão pelo quarto, onde Anna dá à luz. A Lua, no Tarot, suga a energia, ao invés de promovê-la.


O ENFORCADO - Vienna (Áustria)
A História de Kaspar Weiss

Diz Cesca: “Há uma maldição sobre a senhora. Perigo para quem ceder ao seu encanto. E muitos cederão... muitos. É uma carta poderosa: O Enforcado. Vejo perigo... enfermidade... doença... Lamento senhora, não sei que doença. Há muitos tipos de doença”.

O tempo transcorre, cinco gerações. O Violino Vermelho passa pelas mãos de diversas crianças em um orfanato. A última é um virtuose, menino delicado e com o coração frágil. É levado para Vienna por um tutor que percebe seu inato talento. Quer transformá-lo em um violinista de sucesso. O menino não fala francês - a língua da música - só o alemão. O tutor só se exprime em francês, forçando para que Kaspar entenda a nova língua. Esse é o primeiro sacrifício de Kaspar Weiss.
Apresenta ao pupilo um metrônomo, marcador de ritmo que oscila no compasso das batidas do coração. O tutor aumenta o ritmo e pede ao menino que acompanhe o metrônomo, tocando o violino no máximo de sua rapidez. Assim a execução se tornará perfeita. Kaspar tem uma apresentação marcada, uma audição para um nobre. Se for aprovado, poderá começar sua carreira de violinista. O tutor, apesar de amoroso, é rígido, principalmente quando descobre que a criança dorme com o violino. E esconde o instrumento, no intuito de preservá-lo. Culminando a série de sacrifícios e superações, a criança não suporta a falta do violino e tem um ataque cardíaco. Mas se recupera. O violino volta para sua cama e o tutor aventa a possibilidade de que Kaspar não se apresente na audição. Nesse momento, o menino responde, pela primeira vez em francês, que irá se apresentar sim e que fará um grande sucesso. Supera suas dificuldades. Frente ao nobre, e correndo o risco de perder novamente seu tão ambicionado violino, a pressão é muito grande e ele tem um segundo ataque. O instrumento é mais do que um objeto transacional, é seu único amigo. Exerce uma força mágica sobre o garoto. Desta vez, Kapar Weiss não resiste, cai morto como um beija-flor. E é enterrado com o seu violino.

Perfeita a ligação da história com os significados do arcano XII, O Enforcado. Imagem de superação e sacrifício, de aceitação e também dificuldade na lida com pressões sociais. O Arcano XII pode indicar um processo iniciático, uma prova difícil, e também a submissão a ideais superiores. Há um ideal utópico no Enforcado. A criança se sacrifica pela música e pelo desejo do tutor, que o pressiona. O Enforcado também denota fragilidade física e possibilidade de doenças, aquelas que Cesca prediz.

O túmulo do menino é saqueado por ciganos. A vida do violino continua de acampamento em acampamento, atravessando mares e países, até chegar aos Estados Unidos.


O DIABO - Oxford (EUA)
A História de Frederik Pope

Diz Cesca: “E vejo depois uma época para a vida, para a luxúria e a energia livre do outro lado das montanhas, no mar... no tempo”. Sei que é confuso, Senhora, mas vejo isso e não me engano. A sua alma é como a de Lázaro. (...) Depois entrará na sua vida um homem, um homem bonito, inteligente, que seduzirá a senhora com seu talento e com coisas piores. Em resumo: O Diabo”.

Num bosque, um homem ruivo vestindo uma longa capa é atraído pelo som do violino. Há um acampamento em festa e o instrumento está sendo tocado por uma jovem cigana.

Ele é o dono do território ocupado pelo povo nômade. E troca a estadia do grupo em suas terras pela posse do Violino Vermelho.

Seu nome é Frederik Pope, um violinista que tem uma curiosa forma de compor. Cria ao fazer sexo com sua mulher. Em seguida, frente a uma platéia absorta, apresenta o violino novo e sua nova composição, em frenesi. Faz amor, agora, com o instrumento. Algumas pessoas dizem ser capazes de compor sem envolver o empenho da alma. Outros, não a conhecem. Mas os grandes músicos mostram, em sua expressão comovida e absorta, que há algo maior ali.

Victoria Byrd, sua esposa, é escritora. A ligação entre o casal não só sexual, mas também intelectual. Música letra e dança sempre deram bons casamentos. No entanto, o violonista não respeita os momentos de concentração criativa de Victoria, interrompendo-a. Ele quer amá-la e tocar o violino ao mesmo tempo. Percebendo que se ficasse ali, não conseguiria mais escrever (o que é compreensível mas completamente insano), Victoria vai para a União Soviética, em busca de um norte para seu novo livro. Inicia-se aí uma intensa correspondência entre o casal, até que ele, atormentado pela saudade e usando ópio, resolve parar de escrever. E também não abre mais as cartas que recebe. Começa a cair em letargia. Ela se dá conta da situação e volta. Mas quando chega, o encontra com outra mulher na cama, a cigana que tocava o violino. Desesperada, xingando-o de selvagem, depravado, grosseiro e cruel, acusando-o de estar usando uma musa qualquer, aponta uma arma para ele, depois para a cigana. Mas ninguém era culpado de coisa nenhuma. E ela atira no violino. Pope, arrependido e abandonado, escreve para Victoria, comunicando que irá se matar. E deixa para a esposa todos os seus bens.

O Diabo nos fala de riqueza, talento, paixão, depravação, sexo, luxúria, frenesi, emoções fora de controle, poder criativo, obsessão, confusão, virilidade. De amor por tudo que embriaga, entorpece. De magnetismo e magia.

E tudo isso tem a ver com o violino, instrumento que apareceu na Itália em meados do século XVI e alcançou sua popularidade em XVII. O violino desenvolveu a reputação de uma ferramenta mágica por causa do arco fálico que evoca os sons de um instrumento curvilíneo. Uma metáfora para o ato de criação que combina o masculino e o feminino. Seu valor simbólico não pode ser desvinculado das tradições musicais dos judeus europeus e dos romenos. Não era só um instrumento musical, mas trazia consigo a alma, a essência dessas culturas. Nas lápides e tetos de sinagogas encontram-se desenhos de violinos que trazem motivos astrológicos. As cordas foram usadas como amuletos pelos romenos, enrolados em torno do pulso ao invés do laço vermelho. Era indispensável na magia romântica e nos casamentos. O violino parece servir ao Amor.

E desde então a mítica cristã creditou ao instrumento um caráter diabólico, personagem de uma trama folclórica complexa. Quando é tocado, a comunicação imediata com o Diabo se estabelece.

Uma das profissões do Diabo é a de professor de violino e os mestres violinistas eram acusados de obter sua sabedoria através do demônio. Aulas particulares eram ministradas em encruzilhadas. Uma superstição européia é a de que quando se dança ao som de um violinista desconhecido, a alma está em perigo. Conta-se que uma linda jovem, inocente e solteira, encontrou um grupo de mulheres dançando em torno de um homem que tocava violino. Vestia-se com uma longa capa preta e era belíssimo. A garota junta-se ao grupo e descobre no final da dança que havia sido iniciada como bruxa sem saber e num process incontornável. O Diabo toca para que as bruxas possam dançar. E nós dançamos.

O personagem Pope em O Violino Vermelho, faz eco à mítica de Niccolò Paganini (o compositor genovês também empresta seu primeiro nome ao marido de Anna, Nicolo Bussoti). O Diabo teria concedido ao músico a desenvoltura e habilidade que o levou à fama. Paganini tornou-se conhecido como o Morcego da Bruxa (Hexensohn) por causa do pretenso pacto com o Diabo. Ao invés de refutar os rumores, Paganini os alimentava, cada vez mais famoso. Chegava aos concertos em uma carruagem puxada por cavalos negros e vestido com uma negra capa. Demorava para entrar em cena e quando chegava, uivava. Uma de suas composições mais conhecidas se chama Strega (bruxa, em italiano, como bem sabem). Uma vez, Paganini foi forçado a publicar cartas de sua mãe para provar que tinha os pais humanos. As cordas do seu violino teriam sido feitas com os cabelos de Satã. O pacto não teria terminado na hora de sua morte, já que se negou a receber a extrema-unção. Seu corpo não foi enterrado em solo sagrado e permaneceu durante cinco anos em um porão, até que, através de uma petição, a família conseguiu que fosse enterrado.

As lendas que relacionam os intrumentos de corda aos pactos demoníacos tiveram continuidade através do gênio de Robert Johnson, o famoso bluesman americano. Quem não se lembra do famoso duelo de Steve Vai e Ry Cooder no filme A Encruzilhada (Crossroads, 1986) com a versão para guitarra de Caprice 5#, - sim, ele de novo - de Paganini? Coisas do canhoto, Kokomo ou Stradivarius. E já que não posso dizer pra ele nem uma palavra ... Kind Hearted Woman Blues é uma boa forma de tergisversar.

A violinista americana Rachel Barton explorou a mítica e as associações literárias entre as bruxas, o diabo e o violino em seu CD Instruments of the Devil, de2003. Ainda não consegui escutar.


A JUSTIÇA - Shangai (China)
A História de Xiang Pei

Diz Cesca: “Haverá um processo, um grande processo diante de um juiz poderoso e a senhora será a culpada. Cuidado. Cuidado com a cor do fogo”.

O criado de Pope, um chinês, atravessa o mar em direção a sua terra natal. Quando olha através da escotilha (que lembra a lua cheia), levanta-se e vai pegar o violino que agora lhe pertence. Chegando a Shangai, vende o violino a uma loja de antiguidades. O tempo passa. Um dia, uma mulher se interessa pelo instrumento e o dá de presente à filha pequena.

É interessante notar que ao confeccionar seu instrumento, Nicolo incrusta um rubi na cabeça do braço do violino, gema que é retirada pelo dono da loja de antiguidades. E o rubi, que agora falta no violino, é da cor do fogo, do sangue e do regime maoísta.

O tribunal a que a leitura de Tarot se refere é encarnado por partidários de Mao julgando um professor de música que ousa ensinar a música estrangeira, fruto da cultura capitalista. Há a interferência de uma moça integrante do partido, Xiang Pei, que habilmente evita que o professor precise parar de lecionar, mas que não pode impedir que seu violino não seja queimado. De novo, a cor vermelha, o fogo – a fogueira onde arde o violino.

Xiang Pei vai para casa e quebra seus discos de música ocidental. Reconhecemos nela, neste momento, a menina chinesa que ganhou o Violino Vermelho de sua mãe, ainda na época imperialista. Ela pega com carinho no seu violino. Nesse momento, seu filho pequeno entra na sala. Pedindo segredo para a criança, toca o Violino Vermelho. A criança, em sua inocência, comenta com o pai (que está num comício esperando por Xiang Pei), que ele e mãe têm um segredo. Junto com outros companheiros de partido, o pai invade a própria casa. A mulher não está mais lá. Foi procurar o velho professor, que depois de muito hesitar, com medo, aceita guardar o Violino Vermelho e protegê-lo.

A Justiça é no Tarot é tudo que o Diabo não é. Na Justiça reina a ordem, a economia, o radicalismo em nome da lei, de uma verdade socialmente aceita. Fala da responsabilidade, da inocência e da culpa. De divisão. Em seu melhor vestido, a Justiça é a harmonia entre forças opostas. A moral, que ela defende, é vista como uma função da alma humana. Trata da lealdade àquilo que foi eleito como uma verdade maior, mesmo que do âmbito pessoal – é quando o sentimento preside o ato de julgar. No entanto, a Justiça no filme aparece como uma força severa, inflexível. O fanatismo e a violência da Revolução cultural de Mao Tse-Tung. É a Justiça favorável a uma ideologia. Isso pode ser explicado pela presença da Lua, O Diabo e a Morte (invertida). A Justiça está mal aspectada.

A MORTE (invertida) – Montreal (Canadá)
A História de Moritz

Quando Cesca tira a última carta, a Senhora se impressiona vivamente. Mas Cesca diz que, por esta se mostrar invertida, pode representar uma boa notícia: “Sinto o ar soprando velozmente sobre a senhora... transportando-a... um vento furioso e mais nada. A sua viagem terminará sem dúvida... eu vejo isso. De uma maneira ou outra, suas viagens terminarão. Aqui também há um erro, como sempre. Mas a senhora... está forte agora... forte como uma árvore na floresta. A senhora não está sozinha. Um mar de rostos de pessoas amigas, inimigas, de amantes... A senhora levará consigo muitos admiradores que lutarão para possuí-la.. E dinheiro! Muito! Não, senhora. Não tenha medo. Nesta carta eu vejo... vejo um renascimento”.

Agora estamos na atualidade, em Montreal. Mortiz, um especialista em violinos vindo de Nova Iorque, chega à cidade para avaliar um lote vindo da China. Quando vê o Violino Vermelho desconfia que seja o famoso instrumento confeccionado por Nicolo Bussoti em 1681. Manda fazer testes diversos com o instrumento, tendo a ajuda de um restaurador, e guarda segredo da sua desconfiança. Compra uma cópia do violino feita por Pope para compará-los e espera o resultado dos testes. O restaurador diz que nunca viu uma máquina tão perfeita, no que Moritz concorda, dizendo que é o casamento perfeito entre a arte e a ciência.

Agora voltamos à oficina de Bussotti e ao desfecho do filme. Nicolo Bussoti leva o corpo da mulher falecida para seu atelier e o deita sobre a mesa. Corta os cabelos de Anna e faz o pincel do violino. Tira seu sangue e mistura com o verniz e os outros preparados. Pinta o violino de vermelho.

A equipe da casa de leilões Duval descobre que o Violino Vermelho é “O Violino Vermelho” e Moritz confirma. Diz não ter avisado antes porque desejava assegurar-se da verdade. Moritz já estava tomado pela magia do violino e pelo mistério de Anna. E disposto a conhecer sua história. Recebe os exames que confirmam que a pintura do violino contém sangue.

No leilão encontram-se um representante da fundação Pope e o filho de Xiang Pei. Padres da mesma ordem do antigo orfanato alemão fazem contato com a casa Duval pelo telefone. A peça é arrematada por um regente ambicioso pela quantia de dois milhões e quatrocentos mil dólares. Mas o instrumento arrematado é a cópia, pois, nesse ínterim, Moritz conseguiu trocar o verdadeiro pelo falso. E vai embora com o verdadeiro. Telefona para mulher e depois, conversando com a filha, avisa-lhe que vai ganhar um presente.

Assim o violino cumpre sua sina e volta para as mãos de uma criança. O ciclo recomeça. Passou pelas mãos de um menino, de um homem, de uma mulher. As cartas da corte.

Se tomarmos como verdade que o Tarot desempenhava função oracular, ainda mais dentro do contexto de época apresentado pelo filme, a Morte dignificada teria sido interpretada como uma morte física. Não é hoje outra a razão que faz com que diversas pessoas tenham medo da carta e, por extensão, medo do Tarot. Cesca lê a Morte vinda mal-dignificada, invertida. O que poderia significar que é possível fugir da Morte, de alguma forma. Alcançar a Imortalidade na Arte.

Anna Bussoti não foge à morte física. Perpetua-se ao dividir-se em humores: a genialidade de Nicolo, a alma de seu filho e ao fluxo de seu sangue - tudo tornado Música.

Cesca, a vidente, acerta sua predição.



Zoe de Camaris

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Ficha Técnica e
Soundtrack


BIBLIOGRAFIA:

ILLES, Judika. The Element Encyclopedia of Witchcraft. London: HarperElement, 2005.