
O Diabo mora nos detalhes, o inferno da analogia. Semelhanças icônicas e, porque não, irônicas – o nosso tempo, a Era de Kali. A deusa hindu da Destruição e do Renascimento nos mostra sua língua áspera. Eu fumo, você fuma? Fogo e Ar, os ritos da fumaça no fim dos tempos. Trazer a fogueira para perto de si, dizia uma amiga xamã - só pode ser o tal do xamanismo urbano.
Perto do fogo, eu quero estar perto do fogo.
O ato de fumar, segundo a antropóloga Vilma Chiara, é oferecer o sacrifício simbólico do corpo queimando lentamente - agradar aos deuses da Idade do Ferro, assim como Abraão agradou ao Senhor dos Desertos. Um rito de passagem. A supressão do ato de fumar indicaria que o rito foi levado a cabo. Fumantes são eternos adolescentes.

Como sabemos reproduzir gestos ! E como funciona bem a propaganda ... ao sucesso, com Hollywood.

O Tarot é essencialmente polissêmico. Uma história ilustrada em que podemos inserir leituras segundo nossa introvisão pessoal. Uma máquina de produzir sentidos a partir de investimentos múltiplos – culturais, sociais, afetivos. Há tempos, ouvi falar de uma agência que teria contratado tarólogos para auxiliar na resolução de uma campanha. Perspicazes, os publicitários. A comunicação imediata através do discurso com motivação metafórica e metonímica. Códigos. Só muda a matéria de expressão, o suporte. A matéria humana é sempre a mesma. E Kali continua morando nos detalhes.
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Sofro de um astigmatismo muito forte – quatro graus em cada vista. A lua que vejo no céu é dobrada. Meu mundo, sem óculos, não apresenta definições e limites exatos, uma imagem se funde com a outra e se desdobra. E num lance desses, há tempos, observei o verso de um maço de cigarros – a imagem de um homem sufocando, sem ar. Num primeiro momento, meus olhos não identificaram que o fundo da cena apresentava uma escada, não percebi a profundidade dos degraus. Me pareceram uma persiana.
Assim como a "persiana" que observamos ao fundo da lâmina de número 9 do naipe de Espadas no Tarot Waite. Inevitável mesmo foi traçar analogias. Ora, nos significados do 9 de espadas lemos o sofrimento, a agonia. O pesadelo que acomete a moça que tampa os olhos com suas mãos aflitas. Não há no pesadelo, no mais das vezes, a supressão repentina do processo respiratório? A Apnéia, Hipopnéia, o sufoco? São praticamente 9 os degraus na imagem do Ministério da Saúde. E na carta de Pamela Smith, o debrum do lençol ou os limites do colchão sugerem uma décima espada.
No livro O Natimorto, quadrinista Lourenço Mutarelli associa as cartas do tarot às nada agradáveis imagens dos maços de cigarro. Eu já tinha tido essa idéia - o produtor e dramaturgo Felipe Hirsh está de prova, já que uma noite lá em casa contei para ele sobre o quanto as imagens do verso das carteiras de cigarro se prestaria a um tarot degradado, ocasião em que Felipe me falou sobre o livro de Mutarelli, na época ainda não lançado.
Mutarelli relaciona o homem frente à escada ao Enforcado. E a imagem do casal na cama, que traz a advertência sobre a impotência sexual, ao arcano XVIII, A Lua, conforme se lê:
"Dois cães uivam enquanto bebem lágrimas lunares. Sob eles, um lençol de água. Na água, uma criatura, dizem, o escorpião. A Lua é cortada, e não vemos a parte superior. No maço, dois seres humanos. (...) Na parte inferior da imagem, um lençol cobre seus órgãos genitais. Na parede azul, como o céu, vemos ao centro um detalhe da moldura de um quadro que não vemos. A Lua."
O inferno das analogias. Não é o Diabo a sombra do Enamorado? Sempre precisando fazer escolhas. Inferno sem o qual um tarólogo não vive. E enquanto meu peito aguenta, acendo mais um cigarro. O Ministério da Saúde adverte ...e eu, me divirto. Enquanto posso.
Dedico mais este artigo para a taróloga Vera Tanka. Que fumou o quanto quis e não morreu disso. E trouxe, pra sempre, a fogueira perto de si.
Zoe de Camaris
out / 05
Dedico mais este artigo para a taróloga Vera Tanka. Que fumou o quanto quis e não morreu disso. E trouxe, pra sempre, a fogueira perto de si.
Zoe de Camaris
out / 05