30 de agosto de 2005
Fortuna Minor
~ O Acidental Perfume do Almíscar ~
Jalal ud-Din Rumi
Não atente ao acidente
(efêmero e instável )
pois sua essência
é semelhante à essência
do recipiente que contém o almíscar,
e o mundo e seus prazeres
é parecido com o perfume do almíscar.
O perfume do almíscar
não é duradouro
porque é um acidente.
Logo, se alguém busca
o almíscar no perfume
sem contentar-se só com o perfume,
faz bem.
Agora, se alguém se submete ao perfume
do almíscar faz mal, porque se rende
a algo que sua mão nunca poderá reter.
O perfume não é senão
uma qualidade do almíscar.
Enquanto o almíscar
permanece nesse mundo
podemos aspirar o seu perfume;
mas quando se evapora
e cruza o véu do invisível
os que vivem por seu perfume,
morrem.
Porque o perfume
é inerente ao almíscar.
É a parte em que o almíscar se manifesta.
* do discurso de número 12 do poeta Jalal ud-Din Rumi, com tradução de Monica Berger. A imagem é da figura geomântica Fortuna Minor.
17 de agosto de 2005
O Vinho do Invisível
A Temperança / Jacques de Gheyn
Verte, ó saqi, o vinho do invisível.
Com este signo, com este nome,
falemos do que não tem signo nem nome.
Deixa-o jorrar em abundância,
que este ato enriquece a alma;
embriaga-a, ajuda-a a alçar vôo.
Vem, derrama mais uma taça,
ensina aos saqis a arte da escanção.
Como fonte que transborda do coração de pedra,
rompe o jarro do corpo e da alma.
Faz a felicidade dos amantes do vinho
e a inquietude dos que só fruem o pão.
O pão é o artífice da prisão do corpo,
o vinho, a chuva que cai no jardim da alma.
Quanto a mim, uni os extremos
das águas que cobrem a terra;
cabe a ti alçar a tampa da ânfora do céu.
Fecha esses olhos que só vêem imperfeições
e abre aqueles que sabem contemplar o invisível,
que não se detêm diante de mesquitas, de ídolos,
pois os desconhecem por completo.
Silêncio!
É nesse silêncio que surge o tumulto
e faz calar nosso mundo inferior.
Jalal ud-Din Rumi
(poeta persa do século XII)
A Temperança / Hendrick Goltius
2 de agosto de 2005
O Desenho
a situação /6 de copas
Numa nítida manhã, quando eu era pequenininha e estudava no colégio de freiras, resolvi fazer um desenho. Colorir e pintar coisas que estava aprendendo na escola. Nunca tinha feito lição dobrada, só o que me era pedido. Por isso, foi diferente sentar frente à mesa redonda, os lápis de cor espalhados, o molhado do cabelo gelando um dos ombros. Minha mãe cozinhava, barulho de panelas misturado com o cheirinho dos primeiros temperos. Eu tinha um periquito chamado Ouro Verde e, se nesse momento ele piasse abrindo o delicado biquinho me desenharia com o lápis azul na mão, compondo a curva de um arco. Depois a ponta da flecha e a empunhadura da borduna, a linha da zarabatana.
Primeiro ano da primeira série - devo ter colorido também uma oca, um cocar sobre a folha de arquivo. Me sentia feliz - com todo capricho poderia agradar à professora. Guardei a folha dentro do caderno de exercícios e o que me alimentou na hora do almoço foi a beleza dos desenhos. Meus desenhos. Entrei no ônibus do Seu Rigoni com a odiável touca azul-marinho que minha mãe insistia em me agasalhar. Quando soube da existência de Santa Joana d’Arc me senti uma verdadeira mártir, aquela coisa me apertando. Detesto que me apertem o pescoço, possível razão para que eu me sufoque aos poucos fumando mas isso só vem ao acaso e não ao caso.
Nunca pensei mas é curioso o método Maria Montessori. Eles, inclusive, podem baixar as cortinas da sala de aula para criar um clima intimista – e assim estava quando entrei, a luz atravessando o tecido em direção à minha carteira. De dentro da mala saquei o caderno de exercícios que continha o meu tesouro. Meu arsenal de armas indígenas. As meninas todas nos seus lugares, começa a aula. Não posso interromper. Sou tímida demais para buscar nos confins da minha carteira-caverna, atravessando picos de chiclete e bolinhas de papel, a lição suplementar. O agrado acalentado. Deixe, pensei. Depois eu mostro.
A aula transcorreu como sempre, meu pensamento voando. Prova-relâmpago. Surpresa! Responda 3 perguntas sobre os índios brasileiros e desenhe suas armas. Sorri feliz e me lancei com a ponta do lápis na folha como quem toma o arco do triunfo. O arco da borduna a linha da flecha na zarabatana de grafite. Perfeito. Entrega em tempo recorde, não precisava fazer melhor o que já tinha feito antes. Bate o sinal.
É hora do Recreio.
Eu sentada aos pés da minha árvore magrinha imaginava qual seria a cor da fada que estaria nascendo naquela hora quando uma das metidinhas bestas da minha sala - a mais chata de todas - veio com as mãos cravadas na cintura me comunicar que eu estava colando e a professora me esperava na sala de aula - nessa ordem.
influência externa / O Julgamento
Fiquei tão atordoada que talvez o espírito da árvore tenha me acompanhado até o destino e a fada tenha parado de nascer, perplexa, ou ainda que tenha tomado ares de colibri porque não sei como consegui caminhar até a sala amarela, aveludada feito uma pantufa e perigosa como um pântano, meu coração pulando daquele jeito.
O que é isso? Respondi que tinha desenhado porque achava bonito e que gostaria de tê-lo entregue no começo da aula. Seu rosto traia descrédito enquanto afastava as meninas apinhadas à nossa volta.
primeira conseqüência / 5 de copas
Não sabe que isso é feio, colar? - Eu não colei, Tia. Eu não colei. Ela olhou meu desenho e em silêncio guardou-o dentro da pasta. Ia falar com a Irmã Agnes, professora regente. E me mandou embora. Se eu não sei nem como cheguei até ali, sei muito menos como saí. Porque nessa hora falta a lembrança dos pés em marcha, o destino é o que menos importa. Só existe a confusão.
Hoje, para quem lembra com os seus botões, é óbvia a conclusão de que eu não precisaria colar - nunca apresentei nenhum distúrbio que me impedisse de repetir no turno da tarde o que tinha feito minuciosamente pela manhã. E eu era tão inocente, tão quietinha, a menina que arrancava a touca azul-marinho-joana-d’arc assim que entrava no ônibus, destrançava os cabelos e abria o botão do avental quadriculado que estrangulava a cintura.
Se a bondosa Irmã Agnes tivesse sido comunicada, talvez concluísse o que era claro - e acalentado o meu peito, tomado de susto.
Minha nota não melhorou nem pirou, acredito. E o que era agrado, mimo, ficou carente de cor. Empalideceu-se. O que é a decepção. O que é a acusação. A culpa será dos desenhos?
segunda conseqüência / 9 de espadas
Não contei nada em casa, acho. Não lembro. No pátio, as meninas olhavam para mim e riam aos cochichos. No primeiro ano primário, colar não tem nenhum glamour.
Só muito mais tarde fiz mais do me pediam, quando pouco me importava o julgamento já que ninguém veria o resultado dos meus esforços mesmo. Tudo o que é demais que fique dentro. No fundo da gruta-carteira, repleta de bolinhas de papel e estalactites de chiclete. Tudo bem trancadinho.
A nítida manhã e a tarde sulfurosa entraram de mãos dadas pelas janelas aqui de casa ontem à noite lançando um grito que abalou o céu e a terra. A fada que havia ficado paralisada perto da árvore engoliu em seco, mas dessa vez olhou-me nos olhos antes de morrer. E eu vi o que não tinha visto naquele dia: uma mulher de olhos glaucos, surgida do nada, empunhou sua borduna, arrancou a égide, e com um gesto limpo me mostrou o seu, o meu coração.
futuro / A Justiça
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Zoe de Camaris, que inventou esse nome para poder mostrar um pouquinho do que vive embaixo da carteira.
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