26 de fevereiro de 2007

Encontro para a Nova Consciência


carangueja forever no ferro de engomar


Nem sempre o blog, com seu destino confessional, retrata o estado de espírito de quem posta. Por exemplo, o poema de Plath, aí embaixo, não tem nada a ver com nada - é só pra cumprir o que tinha começado a fazer antes de viajar. Tédio, nem em sonho - nem na vida onírica descansei. Há tempos que não me divertia tanto. E trabalhando.

Escrever sobre o que foi o XVI Encontro para a Nova Consciência é uma tarefa hercúlea para quem ainda está imersa nos encantos do Nordeste - então, não nem vou tentar. Tá tudo muito a flor da pele - os amigos, os novos colegas, a profusão de cores, os livrinhos de cordel, D. Marinete do Fiteiro, cafés que despencam fervendo sobre vestidos, o indefectível arquétipo da kombi rondando, a rede cor-de-folha, um vento de inocência, sol com chuvas e noites com sol, paisagens rendadas em cobre e azul da janela do avião - lembranças que ficarão marcadas como as incrições na pedra de Ingá.

Gente de todos os jeitos e todas as cores. Gente de turbante na cabeça, de saia cigana, de túnica branca, de terno comportado, de cabelo voador, de colares surpreendentes, de canto curioso. Uma festa de planetas, cartas de tarot, florais, xamãs, rezadeiras, áfricas, telões, música, literatura e, como não poderia deixar de ser, uns malucos de deus querendo atrapalhar. Bem, foi o décimo-sexto encontro, tinha que rolar uns raios senão a coisa não se cumpria. A Casa de Deus ou a Torre Abatida pelo Raio. Um Encontro de libertações. O raio de sol petrificado no meio da praça não foi deixado em paz.

Depois de Campina Grande, cidade ícone do São João, rumei para Natal com dois colegas. Sim, eu deveria ter ido então para a Ilha de Páscoa mas resolvi deixar quieto porque já era muita festividade pra minha cabeça. Que sonho de cidade é Natal! Que paraíso é o recanto da Sônia! A cor do mar me alucinou. Alfinetes de pedras negras cravadas na areia rosada. A lua crescendo soltinha no céu.

Em 10 dias, vivi mais de mil emoções diferentes. Fortes, delicadas, hilárias, líricas, intensas. Entusiasmo é mesmo estar repleta de deuses. E a gente só pode mesmo é ficar grata pela existência. E pelos amigos que encontra no caminho.


Zoe de Camaris


da esquerda para direita: Alexsander Lepletier, Arhan,
Zoe, Nei Naiff, Vera Chrystina e Giancarlo Schmit.

Tédio


Fantastical Tarot


Folhas de chá, frustrando anseios de desastre,
Propõem futuros nos quais nada ocorrerá:
malgrado a palma de sua mão e seu bocejo,
Nem a cigana vê perigo ainda a vencer.
Estéril toda ameaça, o cavaleiro ingênuo
não sabe de dragões e acha ogres obsoletos,
enquanto, hoje blasées, princesas consideram
ridículo enfrentar terrores em torneios.

Feras, no bosque de Henry James, não surgirão,
pondo a carreira vã do herói em crise; e quando
anjos tranqüilos soprem a divina trompa
a um público entediado e, enfim, talvez sequioso
de horror – pedir, premiar não farão sair, pela
porta enfadonha da ruína, a dama ou o tigre.


Sílvia Plath
Tradução de Nelson Ascher
(poema inédito - o original em inglês está aqui)

Celtic Dragon/Quatro de Copas

14 de fevereiro de 2007

SYMPATHY FOR DEVIL


Alleged Tarot

É sempre quando você menos espera. Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, e você lá, lépida, bonita, feliz, espirituosa. Se arriscar, faz até sol. Ele é o pai da alegria e seu artifício mais hábil, nas palavras de Baudelaire, é fazer de conta que não existe. Armadilha armada, arapuca disfarçada. Seduz você com a beleza, puxa de mansinho. E claro, você está entre amigos. Amigos. Imagine se não fossem amigos. E bem sabe, ora, que a inocência... quem é assim tão inocente frente ao pai das aparências? Ele gargalha empunhando o gás hilariante e você sorri junto - vai, vai rindo. Divertidíssimo.




Engata a primeira no tranco, a segunda, a terceira desliza e quando se dá conta, está a mil por hora. Percebe que tem algo errado. Esboça uma reação. Mas aí é tarde demais, princesa, você já não tem como lutar porque depôs as armas faz tempo. E continua sorrindo e sorrindo e sorrindo. E roda e roda e roda... até cair.




Se, além disso, ele simpatizar muito com você (independente de quanto você simpatize com ele, embora o costume é que seja recíproco), espere pelo pior na hora em que acordar. Você pode escutar histórias inacreditáveis. E mergulhar com força no lado escuro da lua. Eu tenho certeza que no limbo (ou seria no purgatório?), todos se sacodem com Pink Floyd. I Hate Pink Floyd diz Johnny Rotten. Me too. O inferno é uma jaca gigante e a essas alturas, você já enfiou os pés pelas mãos.




A iconografia é clara: O Diabo age nas suas costas. Você não o vê. Parece que há um momento só de lucidez, como se ele dissesse: - Você pode, mas agora não quer mais escapar. E aí, é você que faz de conta que ele não está lá. Está presa por sua única e exclusiva vontade. Seus amigos sorriem de novo, mais pra lá do que pra cá. As iscas, as de sempre - ele nem se dá ao luxo da originalidade. Sexo, drogas e rock'n roll. Para alguns, o dinheiro também funciona.


Xul Solar Tarot

Só há uma forma de escapar. A memória. Memória que ele também apaga. Você conhece o lado escuro da rua, baby? Se ao menos lá no Érebo tocasse Lou Reed... Mas já faz tempo, tanto tempo... como é mesmo a cara do lobo mau? Você esqueceu o profile do predador? Então não foi tão mal assim, não é mesmo? Ainda se recorda das noites que não acabam nunca, do silêncio que aterroriza? Da vergonha do espelho, dos pensamentos obsessivos, da culpa que bate insistente a campainha, pior que revendedora da Avon? Do alarme disparando? Do balanço das folhas? Esqueceu da insônia? Do cocô do cavalo do bandido perdido no Arizona? Hum, doçura, então você não viveu. Porque não se lembra.

O quê? Vai atirar a primeira pedra, leitor? Cuidado: pode ser um bumerangue.


Psychotic Tarot

Talvez exista uma segunda forma de escapar. A intuição. Aquela leve nota de enxofre que pode ser capturada na profusão da lança- perfume. É hora de afastar. Se afaste. Encosto tem até na maionese, dizem. Tinha maionese onde você esteve, Pepe Legal? Ah, então tá tudo explicado...

Taí. É Carnaval, seu reinado. Fique ligado. Porque não é qualquer um que pode brincar em paz. Espero de coração, que você seja um deles. Eu, por minha vez, vou trabalhar. Com um olho nas costas.

Zoe de Camaris

p.s.: presentinho de um cara que entendia do riscado:



Ao Leitor


A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso corpo e o espírito viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.

Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.

Na almofada do mal é Satã Trismegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade estão se evoca
Por obra deste sábio que age sem ser visto.

É o diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo que repugna, uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.

Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.

Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.

Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vício ancestrais,

Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;

É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu o conheces, leitor, ao monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão.


Charles Baudelaire
tradução de Ivan Junqueira e Jamil Haddad

8 de fevereiro de 2007

As Núpcias Falhas


Fernanda Guedes

Catarina comia bife a cavalo, eu comia bife a pé. Catarina andava de bicicleta, eu andava a pé. Catarina dispunha de um enorme armário onde arrumava todos os seus pertences, eu dispunha de uma cômoda anã. Catarina depilava a axila com uma lâmina gilete, eu fazia a barba no salão Veneza. Catarina torcia pelo Botafogo, eu não torcia por clube nenhum. Catarina era Tom Mix, eu era Greta Garbo. Catarina tinha um amigo sobressalente, eu não tinha amiga sobressalente nenhuma. Catarina babava-se por doce de leite, eu, por compota de caju. Catarina gostava de farda, eu gostava de short. Catarina jogava tênis, eu jogava bilboquê. Catarina sonhava tecnicolor, eu sonhava em preto e branco.

·

Depois de onze meses de agridoce convivência, persuadidos da diversidade de nossos gostos e temperamentos, ajudados por uma cartomante resolvemos destruir o noivado. Consolei-me pensando no caso de Kierkegaard que, embora por outros motivos, resolveu também destruir o seu.


Murilo MendesPoliedro (1972)