"O mundo impede que o silêncio fale"
E. Ionesco
PRÓLOGO
O
Tarot é uma galeria de figuras enraizadas há seis séculos no
imaginário ocidental. E para que assim seja reconhecido, o baralho
filosófico de 22 cartas obedece uma organização e dinâmica
peculiar na articulação dos seus conteúdos. Sem a manutenção do
encadeamento numérico tradicional e a presença de determinados
motivos iconográficos que o caracterizam, deixa de ser um Tarot. No
entanto, por tratar-se de uma máquina de imaginar, é um campo
aberto para releituras e vôos criativos. A imaginação que embalou
sua gênese é também o que perpetua sua força representativa até
os nossos dias.
O Tarot Furtado, idealizado por João
Fasonare Acuio, propõe uma releitura surpreendente apesar de sua
aparente simplicidade. As imagens não sofrem modernização ou
adequações a um universo particular de signos, como acontece nos
baralhos transculturais. Exibem as imagens tradicionais de Marselha,
mais especificamente o Tarot Jean Payen. Sua singularidade é
marcada pela supressão de símbolos fundamentais do contexto das
cartas. O Mago, por exemplo, perde o seu chapéu-leminiscata e alguns
instrumentos de sua mesa, fazendo com que se torne um mero
prestidigitador de feira, um falastrão. Não tem a conexão com o
infinito que lhe propicia um dito inspirado ou o poder de criar
realidades inesperadas.
“Um tarot pra tudo quanto é nego torto”,
diz o autor, que relaciona sua criação a ícones populares de
Curitiba, como Maria Bueno e Gilda. Um Tarot da Cidade. Uma carta
achada ao acaso, um beijo roubado, uma oração. O daimon
rondando as ruas, o coiote, o brincalhão, um gênio que perdeu a
lâmpada e que, na sua procura, aciona o acaso. A Roda Fortuna está
em cena.
Furtar é tirar de alguém algo que lhe
pertence sem a sua permissão. E todos nós temos algo que nos foi
tirado sem autorização consciente. Consciente. Porque muitas vezes
abrimos a janela e criamos o ambiente propício para a entrada do
ladrão. E ele vem na calada da noite e de manhã sentimos que algo
sumiu, algo precioso, mas não sabemos muito bem o quê. Fica uma
sensação de vazio e a falta nos acompanha, às vezes, por anos a
fio.
O que nos foi tirado? Por que perdi a paz?
Quem é o ladrão? Como pode nos ser restituído? E o que
desejávamos, no final das contas, realmente? O que norteará nosso
desejo? Estas são perguntas que o Tarot Furtado nos estende de uma
forma física, indubitável, já que a imagem está arraigada no
corpo e possui uma consistência quase material. Ao emudecer símbolos
de cada lâmina dos arcanos maiores do Tarot, a falta comunica. E o
espaço em branco, en reserve,
identificado em uma matriz imagética arquetípica, exige
preenchimento. O silêncio grita. A ausência é a evidência. O
Tarot Furtado tem a característica de nos mostrar a pergunta e não
a resposta.
A imagem de uma carta de Tarot é
arrebatadora. Permite que se perceba, simultaneamente, todo um
conjunto de elementos. As sensações visuais nos chegam como um
todo, explodem frente aos nossos olhos. E para serem traduzidas pela
linguagem escrita e/ou falada exigem um eixo temporal – só é
possível enviar uma palavra por vez. E por isso mesmo, ante as
cartas, o primeiro momento apreendido é o da sensação e não da
palavra. É importante que se mantenha a reação frente a supressão
de um símbolo, com o mesmo silêncio. Assim as impressões se
multiplicam. A palavra é tardia e, como bem aponta Hegel, vem como
uma mediação entre o corpo e o objeto.
O Tarot Furtado ganha quando apresenta o
silêncio como sua primeira fala. E ganha mais quando é utilizado de
acordo com a sugestão do seu autor. Segundo Acuio, há um
procedimento inicial para que o Tarot Furtado se declare, um circuito
mágico, um rito. Um rito que tem o poder de lhe devolver o que
sempre foi seu, por direito. O tarólogo, ou aquele que ocupa o papel
de tarólogo, é o mediador. Um agente do silêncio.
Na caixa, nos são apresentados dois
conjuntos idênticos de lâminas. O primeiro é seu, o segundo é
dado a alguém de sua escolha. Se você recebeu o seu Tarot de
presente, para que se dê continuidade ao ritual, precisará de mais
um maço. Você descobrirá no processo: 1) o
que lhe foi roubado, no exato
momento em que lhe é restituído; 2) quem
roubou, quem é o ladrão; 3) qual
é o seu verdadeiro desejo, enquanto disseca a trama. O Tarot Furtado
é um tarot investigativo. Se você quer saber, vai descobrir.
Prepare-se, a história vai começar. A
primeira leitura é única, o ritual é feito apenas uma vez. As
cartas são embaralhadas. Peça ao Tarot o arcano que vai lhe
restituir o que é seu. E ao mesmo tempo, diga o seu nome em voz
alta. O nome possui uma grande força evocativa e mostra quem está
no comando. É você quem pede o seu Arcano Restaurador. Embaralhe
três vezes.
I ATO
Eis a primeira carta e a mais importante, o Arcano Restaurador,
a que indica o que lhe foi furtado. Se, por exemplo, a carta é
O Imperador, o que lhe foi
roubado é a águia que falta no escudo, ou seja, a visão que todo
governante precisa para que não se torne um déspota. O aparecimento
da carta restaura o equilíbrio perdido, ou seja, lhe devolve a
águia, o poder de enxergar longe e ir com afinco atrás daquilo que
deseja. Não esqueça: a imagem é lida pelo símbolo (ou conjunto de símbolos) ausente(s). Sem o pássaro, o governante (de sua própria vida) fica
apenas na defensiva. Mas quem roubou a águia da carta? Este é o
segundo passo, descobrir o ladrão.
II ATO
O segundo conjunto de cartas é então
entregue e apresentado ao destinatário de sua escolha. Mas antes que
você possa descobrir o ladrão, sorteará o Arcano Restaurador para
o seu presenteado, repetindo o primeiro processo. A indicação é
que esta carta não seja interpretada pelo tarólogo embora seja
importante a escuta, o que a pessoa sente e tem dizer a respeito.
Prepare os ouvidos e feche a boca. O Tarot Furtado inverte o processo
tradicional de leitura das cartas.
Agora, de posse do seu baralho, peça ao
presenteado que tire uma carta do maço para você. A carta lhe
apresentará o bagunceiro, o daimon,
o coiote, o ladrão. Vamos supor que saia O
Eremita. Pois bem, foi este velho
sem lamparina, lamparina que é símbolo de conhecimento e
profundidade, sem luz, quem roubou a águia do seu Imperador. Talvez
o ladrão não tenha feito de propósito. Talvez o ladrão seja só
um agente do destino, o que faz a coisa toda se desenrolar, o criador
da desordem. Sem luz para reconhecer o caminho, o Eremita pode ter se
servido de qualquer outra coisa que estivesse à mão. Mas pode ser
sim, o mal-intecionado: acolviteiro, eminência parda, conspirador.
Ou pode ser você mesmo.
Deixe a imagem falar por si só. Lentamente,
vá identificando os contornos do ladrão. Fale o que lhe der na
telha e não espere por uma interpretação. O tarólogo irá
escutar. E pontuar, se necessário.
III ATO
Agora, em segredo, você tirará o Arcano do
Desejo, completando o circuito. Esta terceira carta é o seu ideal.
Mais que um objeto de desejo, mostra o conjunto, o contexto, o
agenciamento. Mais do que algo, deseja-se o algo e o seu entorno.
Vamos supor que a carta sorteada seja A
Roda da Fortuna. Ela será lida
de acordo com a imagem do Tarot tradicional, ou seja, como se não
faltasse na imagem a manivela que faz girar a roda. Podemos
interpretar esta sequência hipotética da seguinte forma: O que lhe
foi tirado é dom da visão arguta (a águia desaparecida do escudo
do Imperador),
e que lhe foi surrupiada pelo Eremita
sem auto-conhecimento (falta a lamparina). Do momento em que A
Roda da Fortuna aparece com a
manivela no lugar onde deveria estar, há a possibilidade de que a
vida volte a acontecer no ritmo desejado, ao menos como um
“vir-a-ser”. A sorte lhe foi restituída no devir. O Arcano do
Desejo nos dá o tema da leitura. Não conte a sua carta do desejo
pra ninguém.
EPÍLOGO
O Tarot Furtado se revela no momento em que
é dramatizado. Mas quando passei pelo processo (e o fiz lentamente,
sem a angústia de um resultado) percebi que a interpretação geral
(a conclusão que se tira das três cartas) acontece em vários
níveis. Num primeiro plano as associações se referiram a algo
bastante óbvio e conversavam com o cenário a que eu estava
submetida no momento da leitura. Foi como se eu levasse um tapa na
cara. A impressão permaneceu durante alguns dias até que eu
percebesse que o resultado calava mais fundo na minha alma e não se
referia a uma só situação emergente (embora fundamental). Vi a
recorrência de furtos e ladrões no palco da minha vida. A mesma
trama encenada por atores diversos em épocas diferentes; personagens
que trocaram de roupa, mas fizeram o mesmo papel.
E sei que agora, de posse desta leitura
única, poderei recorrer a ela em diversas situações quando a mesma
tríade poderá se apresentar, mas agora, minhas atitudes frente a
questão estarão em um diapasão diferente, em uma oitava maior.
Então, o Furtado acontece no momento em que é dramatizado porém
continua se desenvolvendo no tempo.
Mas então, você me pergunta, o Tarot
Furtado só pode ser usado dessa maneira? Eu lhe diria que é
bastante nutritivo manter o ritmo pausado de revelações que o
procedimento mágico propõe. Vivemos em uma cultura de imagens,
imagens sobrepostas em ritmo alucinante. Mal sentimos o que uma
imagem revela e já estamos olhando para outra e, assim,
sucessivamente. O Tarot Furtado é um convite à reflexão apurada
quebrando o ritmo loquaz das imagens e criando uma área “de
respiro”.
No entanto, este conjunto de cartas pode ser usado por um
tarólogo ou um diletante em uma leitura comum, principalmente quando
o fio da meada interpretativa se perde. As três cartas são jogadas
obedecendo a mesma regra, mas agora como método:
1) Arcano restaurador; 2) Arcano Ladrão; 3) Arcano do Desejo. Basta não esquecer que, ao contrário do que a prática comum estabelece (1. passado (ou tese) / 2. presente (ou antítese) / 3. futuro (ou síntese) no Tarot Furtado os atos são intercambiáveis. Ou seja, apesar da sequência obedecer uma ordem de tiragem, ela pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, do meio para os lados... O Mago, aquele que inicia todos os trabalhos do Tarot, sabe bem como mexer seus pauzinhos. Embaixo de qual copo, diz o Prestigitador, está a moeda? Pois é, você não sabe. Pode estar embaixo de qualquer um. Tenha em conta também que o Arcano do Desejo não é a meta. O Desejo é como a Utopia: quando se alcança, já deixou de ser. O que realmente importa, segundo a visão de seu autor, seja no procedimento mágico, seja no método usado para uma leitura comum, é tirar a pessoa da esfera limitante da posição de número 2, O Ladrão, e certificá-la que ela recebeu o que lhe havia sido furtado e que ressurge na posição 1, A Restauradora.
E fique atento ao reaparecimento das suas
cartas mágicas quando estiver jogando para alguém. Se a sua carta
primeira (O Imperador)
reaparece na posição 1 do consulente, é uma confirmação daquilo
que lhe foi restituído. Lembre-se disso, parece que é preciso. Se a
sua segunda carta (O Eremita)
surge na posição 2 do consulente, cuidado. O ladrão está à solta
novamente e exatamente naquele momento. Interrompa a leitura e retome
dias depois. E se a sua terceira carta (A
Roda da Fortuna) constelar a na
posição 3, ah, que alegria. Você está perto de alguém que tem o
mesmo desejo que você. Comemore!
A riqueza do Tarot Furtado reside na inversão de um olhar comum. Não é
consulente que pede a leitura, ela é oferecida pelo tarólogo que
sai de sua casa e visita o seu escolhido. O tarólogo pode pagar uma
moeda ao consulente. A leitura, que normalmente é feita de uma vez
só, aqui é concluída em etapas, respeitando a gênese do Tarot,
uma Arte da Memória.
Atravessando o tempo, o Tarot Furtado ficará
para sempre. Furtando o coração das cartas, Acuio nos devolve toda
a loquacidade do silêncio. E o silêncio faz um barulho danado.
Zoe
de Camaris
p.s.: Ah! Se você quer começar o circuito mágico e não ganhou um baralho de presente, fale com o João! Ele se oferece para tirar a sua primeira carta. Escreva para joaoacuio@gmail.com.