Mexican Tarot / José Raúl PérezTemperar é uma obra de exatidão. Mas de uma precisão plástica, movente, em andamento, em eterna moldagem: o preparo. Temperar acontece no tempo. Fala de demora. O ato de equilibrar dentro espelhado fora, proporcionalmente. Aí estão contidos o apaziguamento do díspar, o amálgama do diferente. A Justa Medida.
É possível suavizar. É possível apimentar. A avaliação pontual é ditada pela intuição de quem adquiriu o controle interno das sensações: o calor que protege, o frio que acalma.
O equilíbrio conquistado. Sabe-se, sem régua ou cálculo aparente, o ponto a ser atingido. Transfere-se o que vai na alma para o mundo exterior.
Como Água para Chocolate.
A Temperança agrega, em sua função de mescla, significados de alguns arcanos aparentados - o ajustamento da lâmina VIII, os processos de purificação da Estrela, a dança da bailarina do Mundo. É equilíbrio, como na carta da Justiça. Mas não o equilíbrio frio da espada. Se a Justiça separa, a Temperança vincula. Está em contato com a terra e a água, como a Mulher-Estrela e também porta a ânfora. Mas a Estrela mostra o que é íntimo, enquanto a Temperança é o próprio processo de intimidade. Se a Estrela expõe, a Temperança contêm. O bailado do Anjo, comparado ao arcano XXI, é internalizado.

Exposição Andrea Vitali / Temperance
Se pensarmos que cada carta age na estrutura interna do tarot com suas próprias qualidades, a Temperança nutre toda carta que a circunda - mistura significados de outras imagens em si mesma, da mesma forma que o Mago pode acionar em cada arcano a força individual dos naipes (não tem o prestidigitador sob seu controle as moedas, as taças, os bastões e a espada? Mas o mago é um bricoleur, mistura elementos heteróclitos e nos dá a imagem composta – um mosaico).
Sophrosyne. Moderação. Calma. Sedação - são palavras contidas na Temperança. Mas o poder do arcano XIV no Tarot, comparado com a antiga imagem da virtude que porta o freio nos livros de Iconologia, é maior: pode colorir com guache delicado o que está demasiado pálido. Salgar levemente o insosso. Apimentar a substância sem graça. Sempre na medida certa. Como em Água para Chocolate.
Nenhum relacionamento se fixa, em sua perene mutabilidade, sem o poder do Anjo que Tempera. O Enamorado desconhece seu poder, ainda não chegou lá, é neófito, candidato. A flecha de Cupido acabou de tocar seu coração. Nas cartas da Escola Francesa vemos um homem entre duas mulheres, uma loira e outra morena - o protagonista em situação de impasse. A carta é comumente interpretada desta forma. Mas se tomarmos a “mulher morena” como um sacerdote, a situação muda de figura. Assim como nas imagens da Escola Inglesa, temos a cena de um casamento.
Seja como for, o Enamorado fala de um começo, de surpresas. A ligação entre o homem e a mulher está se dando, repleta de encantamento e esperança. O casal ainda não conhece o amálgama, com suas dores e delícias. A verdadeira Aliança Interna. A carta do Sol, terceira imagem da tríade dos relacionamentos no Tarot, representa o desfrute momentâneo que só é possível a partir da ação contínua da Temperança. Sem ela, não existe amor.

Altered Tarot / Temperance
A Temperança rege os processos de envolvimento, o orvalho íntimo, a saliva que se mistura, os sucos, o suor compartilhado. O mesmo cheiro. Quase o mesmo gosto. Íntimas suculências. Como em Água para Chocolate - feitos um para o outro.
Os filmes românticos e seus finais previsíveis apresentam, não raro, o Enamorado em ação. A felicidade conquistada é o Sol. Não nos convencem porque sabemos que algo ali está suprimido, a maior parte da mistura. É na Temperança que acontece a Alquimia Amorosa. Se a alma gêmea existe, é impossível viver ao seu lado sem a ação do anjo que tempera. Os relacionamentos que se partem, é aí que se perdem. Na sutil arte da mistura faltaram elementos necessários, ou ainda, a calma daquela que, delicadamente, transforma pedra em ouro.
Se a Temperança é traduzida por moderação, seus efeitos podem ser bombásticos. O anjo apenas olha – Como em Água para Chocolate, é possível assistir a magia operada pelo alimento. A gula de quem sorve, engole, sob o olhar arguto do cozinheiro. Ninguém cozinha bêbado com bons resultados.
Ao lado do Diabo, arcano XV, a Temperança é tradução da febre que avassala. Temperar não é apenas reter. Refrear.
Se observarmos bem as taças, é notória a impossibilidade física no fluxo das águas. O anjo manobra ânforas mágicas. E plasma, no seu interior, gosto, cheiro, tato, olhar. Refresca e amorna. Esfria e aquece. Trabalha com o que é essencial, vertendo seiva em seiva, incorporando, envolvendo, aglutinando.
Reversibilidade. Colaboração e contato.
Harmonia.
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Ofereço, com todo o meu carinho, esse pequeno ensaio à Vera Tanka, taróloga que no dia de ontem, solstício de inverno, partiu com o anjo que tempera para outra esfera.
Estamos aqui Tanka. Lembra da gente.
Zoe de Camaris