18 de maio de 2006

"Recuerdos" do Tarot em Frida Kahlo II


Suzanne Mir / colagem

Por ter encontrado praticamente todos os arcanos de um "tarot em Frida", fiquei pensando como apresentá-los. Por um momento, imaginei a ordem cronológica - me pautar pela sua biografia, mas a idéia não me satisfez. Ordenar numericamente as imagens segundo a estrutura do tarot, tão pouco. Acabei optando por mostrá-los segundo o que tenho a dizer, afinal, a bibliografia que tenho aqui disponível não é farta como gostaria. Num segundo momento, reedito tudo, de outra forma. E vou parar de pedir a Frida que me oriente - no último post os livros começaram a cair no chão, as portas a bater sozinhas... :)

Começo pelo arcano IV, Os Amantes, passando pelo Diabo, o 10 de espadas, O Mago e finalizo com O Mundo.

A obra de Frida não pode ser separada do seu relacionamento com Diego Riviera. Quando o filme "Frida" foi lançado, um dos comentários era de que o filme se detinha mais na relação entre os dois do que na trajetória da artista. Bem, não é possível esquecer que estamos frente a um produto de mídia norte-americano e que histórias de amor dão mais ibope que documentários. E que a vida e a obra de Frida estão fundidas intimamente.


salma hayek e alfred molina in "Frida" (2002)

Outro dado que registrei ainda antes de assistir ao filme, foi uma conversa entre amigos que se referia ao quanto Diego Riviera teria feito Frida sofrer. Discutimos semelhanças com as histórias de Silvia Plath e Ted Hughes e também de Rodin e Camile Claudel. É fato que Diego Riviera era um mulherengo compulsivo. Mas também é fato o amor intenso, obcecado, que Frida nutria por ele. Seus quadros o demonstram largamente. Não é possível esquecer da seguinte frase de Frida, sob o impacto da separação: ''Acho que é melhor nos separarmos e eu ir tocar minha música em outro lugar com todos os meus preconceitos burgueses de fidelidade''. É fácil extrair deste dito que, para a comunista atuante, uma mulher que chocou a moralidade do seu tempo, a fidelidade (ao menos em tese), era um procedimento anacrônico, descontextualizado do meio sócio-cultural em que vivia. Há uma cena em que os amantes fazem um pacto. Diego diz a Frida que não lhe seria fiel. Ela pede então ao futuro marido, lealdade, sinceridade. Estes acertos são fundadores e marcam um relacionamento, seja entre quem for, enquanto dure. Um sempre irá lembrar ao outro o que foi combinado num clima de cumplicidade. Imagino o quanto deve ter sido contraditório para a canceriana Frida, de tenaz forte, aceitar as escapadas de Diego. Mas trato é trato, pacto de confiança.


"Frida Kahlo e Diego Riviera" (1931)

Escrever as analogias imagéticas do arcano VI com a obra de Frida, é desnecessário porque óbvio. Mas para quem acha as imagens do Tarot demasiadamente fortes ... Frida Kahlo, nesse sentido dá de dez no Tarot. É verdade que o delicado trabalho de Pamela Smith, na imagem abaixo, é o mais leve que conheço. Mesmo a sombra da dúvida que paira no Enamorado do tarot de Marselha, aqui não se retrata.


the lovers / waite tarot

Mas a paixão, o traço obsessivo que pode ou não permear uma relação de amor, é sua sombra: O Diabo. As correntes são fortes, o par não reconhece seu algoz. O anjo negro se esconde, funciona nas coxias. O sexo desenfreado, a bebida, a impulsividade e a confusão são elementos do arcano XV - número este que reduzido, segundo a prática numerológica, daria o 6, a carta dos Amantes.


the devil / waite tarot

Não li as cartas apaixonadas que Frida escreveu para Diego (publicadas pela José Olympio) em que poderia extrair mais informações. Sei apenas que não deve ter sido um relacionamento fácil (existe?) – ela gostava muito de tequila, era uma mulher passional e transou com diversas amigas. Brigas deviam ser comuns. Nitroglicerina pura.


"Diego en mi pensamiento" (1943)

Frida viu Diego pela primeira vez em 1922. Em 1928, levou suas obras para que ele as apreciasse, ocasião em que se tornaram amigos. Em 1929 estavam casados e participando ativamente da vida cultural mexicana.

Em 1935, nos Estados Unidos, Diego tem um caso com a irmã de Frida, Cristina, que posara para o artista. O golpe foi violento, uma dupla traição. Um dos quadros que retratam esse momento conturbado de Frida, e de natureza bastante apelativa, é “Unos quantos piquetitos”. Baseando-se em uma notícia de jornal, Frida transcreve a imagem de uma mulher morta pelo marido ciumento. O assassino, justificando-se perante a polícia, teria dito: “mas foram apenas alguns golpes!”


"Uns quantos golpes" (1935)

O quadro me lembrou imediatamente a imagem e o significado de um arcano menor, o 10 de espadas, que representa uma figura deitada, cravada por dez espadas no tarot Waite e similares. Apesar da interpretação tradicional não aludir à uma morte violenta, fala de traição - que era o momento de Frida, apunhalada pelas costas. A carta refere-se ao desamparo, à razão divorciada da realidade (que parece ter a ver com a observação feita pelo marido ciumento, ao justificar-se), à ruína. Rachel Pollack, estudiosa do tarot, ao interpretar esta carta, diz que basta uma única espada para matar alguém. E que seu significado se prenderia mais a uma atitude histérica, que teria sua voz na seguinte frase: “ninguém sofreu tanto como eu, minha vida acabou”. E parece que este era exatamente o recado que Frida queria passar para Diego.

Optei pelo tarot New Vision, que mostra o que estaria acontecendo do lado contrário da carta, e que introduz a imagem da morte e mostra a face da figura caída, ao exemplo do quadro de Frida. Morte: o marido com a faca na mão e o pássaro negro. As cores das duas imagens também combinam: o cinza do rodapé do quadro com as nuvens escuras do arcano menor; uma nesga de céu claro, amarelado, dialogando com o chão pintado de amarelo.


10 of swords / new vision

Depois da decepção, Frida viaja, afasta-se de Diego, dedica-se com vigor ao partido comunista, tem vários casos amorosos. Seu romance com Leon Trotski rendeu assunto. Nessa época, Frida conhece André Breton, contato importantíssimo na sua carreira e que lhe levará mais tarde a Paris, na sua primeira grande exposição em terras estrangeiras. Apesar do afastamento que ocorreu entre Frida e Diego, eles continuam casados. Em Nova Iorque, Frida tem uma relação bastante apaixonada com o fotógrafo Nickolas Murray. Depois de terminado o romance, Nickolas lhe escreve: “Eu sabia que NY só te tinha satisfeito enquanto substituto temporário e espero que encontres o teu refúgio intacto quando regressares. De nós os três só estavam lá vocês os dois. Sempre senti isso. As tuas lágrimas diziam-me quando ouvias a voz dele. O meu eu está eternamente grato a ti pela felicidade que a tua metade me deu tão generosamente”.

Ela continuava completamente apaixonada pelo “seu” Diego, Murray percebeu. Mas como Frida não havia se recuperado da traição que descumpria o trato de lealdade, e também por insistência de Diego, que achava que assim ela se dedicaria mais à sua obra e seria mais feliz, dão entrada no divórcio. Os papéis ficam prontos no final de 1939 e eles se separam. Frida começa a beber muito, ao mesmo tempo em que mergulha de cabeça no seu trabalho. É desta época seu quadro "Auto Retrato com Cabelo Cortado". Não queria mais sobreviver com o dinheiro de Diego. Abdica de seus atributos femininos e dos seus trajes tehuna, vestindo um terno tão maior do que ela que poderia ter saído do guarda-roupa de Diego. Ironicamente, pinta na parte de cima do quadro um verso de uma canção mexicana: "Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que está careca, já não te amo". Frida retrata-se com uma tesoura nas mãos e os cabelos caídos no chão parecem estar vivos, enroscados na cadeira.


"Autorretrato com pelo cortado" (1940)

A imagem evoca o Mago no tarot, arcano que fala do princípio masculino e da criatividade. O instrumento da "magia", a tesoura; as três pernas da cadeira, assim como a mesa no arcano I; a letra de música como a inspiração vinda do alto. A partir de deste quadro, Frida cria uma série de auto-retratos bastante semelhantes entre si, diferenciando apenas os adereços. "Manipula vários elementos para expressar temperamentos diferentes que, ao mesmo tempo, escondem a natureza de uma produção em massa, para ser vendida", segundo Andrea Kettenmann. O Mago é um comerciante nato e organiza seus objetos sobre a mesa para poder iludir e extrair alguma vantagem.


le bateleur / camoin e jodorowski

A saúde de Frida piora consideravelmente depois da separação. Em dezembro de 1940, Diego a pede em casamento novamente, declarando: “A nossa separação estava tendo um efeito prejudicial sobre nós dois”. Casam-se novamente. Mas ela coloca duas exigências: que se sustentaria com o seu próprio trabalho e que não teriam mais relações sexuais. Diego diz que ficou tão feliz com a concordância de Frida em reatar que aceitou tudo de muito bom grado. Ficam juntos até a morte de Frida em 1954, poucos meses antes das bodas de prata. Foram 25 anos juntos.

Diego foi o Homem de Frida. Frida, a Mulher de Diego. Uma relação crucial, literalmente. Amor, dúvidas, encanto, beleza, encruzilhadas. Uma ilustração mais do que perfeita para o Arcano VI.

Sim, Diego fez Frida sofrer. O sofrimento de Frida Kahlo também dever ter feito sofrer Diego Riviera. Se por um lado, Diego foi abandonado pela mãe e criado por diversas mulheres a partir de então - o que explicaria sua falta de confiança num amor único - Frida era atormentada por um grande vazio somado às suas inúmeras dificuldades físicas, às suas diversas cirurgias e abortos. Este foi um encontro de duas personalidades marcantes, extraordinárias. E um amor que apesar dos obstáculos, sobreviveu. Com Diego, Frida pôde compartilhar alegrias e dores, amantes e decepções. Foram parceiros e amigos, seus interesses eram comuns.


El abrazo del amor de El Universo, la tierra (Mexico), Yo, Diego y el señor Xólotl

Ele não a amava, então? Relações intensas são condenáveis? Por quem? Por quê? O correto é o que satisfaz as expectativas da sociedade, da família, os preceitos do “bem viver”? Presumivelmente sim. Mas as relações amorosas desafiam as regras do bom senso. Houve dedicação, coragem.

E o Amor não serve à covardia.

Diego ocupava os pensamentos de Frida, o que se vê em diversos auto-retratos, no “Retrato duplo”, presente de aniversario para o marido em 1944, em que imagem funde o rosto dos amantes, e no “Abraço Amoroso ente o Universo, a Terra (México), Eu, o Diego e o Senhor Xólotl,” de 1949. O cão representa o ser que guarda o reino dos mortos na mitologia pré-hispânica. Dessa forma, Frida reconstrói um novo "além-mundo" para ela, a Lua, e Diego, o Sol, onde estariam unidos para sempre. No último arcano do Tarot - O Mundo, O Universo.


the universe / crowley tarot


Zoe de Camaris
p.s.: mais arcanos “em Frida”, em breve.


Bibliografia: KETTENMANN, Andréa. Frida Kahlo, dor e paixão. Lisboa: Taschen, 2001.

Um comentário:

claudia becker disse...

Estava pesquisando uma coisa e me surpreendo com uma entrada no seu blog e estes dois posts sensacionais. Que interessante esse cotejo do tarot com a vida de Frida. Gostaria de ter mais tempo de acompanhar melhor os blogs de amigos.

Obrigado amiga, vc complementou muito a imagem que formava de Frida.

Beijo da CRAW