
Meu colega Kirtan (Marcelo Ivanovitch para os mais íntimos) deve estar terminando agora seu workshop "Desconstituindo Imagens" na cidade de São Paulo - momento em que começo a escrever. A idéia do trabalho é demonstrar que as imagens escolhidas hoje para ilustrar diversos conjuntos de arcanos menores é arbitrária, segundo compreendi. Não seriam seguidas regras que norteassem o leitor de Tarot em um campo seguro. Ou seja, as imagens não estariam mais traduzindo conceitos tradicionais, já que estão sendo reinventadas. Vale lembrar que a tradição em se ilustrar os arcanos menores começou com a publicação do baralho Rider Waite em 1910. Antes de Pamela Smith os menores se apresentavam apenas com padrões abstratos - as chamadas cartas de pintas de que o Tarot de Crowley também é signatário.
Pois bem. Há centos decks inspirados em Pamela Smith. Outros voam ao bel-prazer de seus criadores, como o Tarot Mitológico, por exemplo, que rompe duplamente com o que até então era conhecido. As imagens do Mitológico e de diversos outros Tarots modernos evocam aspectos e interpretações que fazem parte do universo pessoal de cada autor, da sua forma de ver o mundo e da cultura em que estão inseridos.
A proposta de Marcelo é que se atendo ao significado simbólico da numeração, e percebendo-se como esta ordem numérica evolui em cada naipe, teríamos uma ferramenta "descondicionante" da ditadura da imagem. Estratégia perfeita para se manter a coerência. Imagine só você, tarólogo, vagando por uma ilha deserta e só tendo em mãos para saber quando vai sair dali o Tarot de Milo Manara.
Considero a possibilidade também válida para que se aprofunde o conhecimento dos arcanos menores. Mas partir de conceitos se torna um fator complicante quando se trata de ler um Tarot composto de 78 cartas ilustradas com padrões figurativos.
Eu sempre digo aos meus alunos - atenham-se às imagens. É a imagem que comunica no Tarot. É um alfabeto ilustrado, uma linguagem pictórica. É partindo da imagem que se constrói a vistada do tarólogo frente à "arrumação". É assim que as significações vão sendo traduzidas com a delicadeza de quem costura. Se os arcanos maiores, o baralho filosófico, faz parte de um sistema diferente dos arcanos menores; se os dois foram construídos em momentos díspares da história e com finalidades outras, não deveríamos então separá-los por completo? Sim, por que com um sistema eu procederia de uma forma, com outro sistema, eu procederia de outro.
Complica o meio de campo. Afinal, que veio antes, o conceito ou a imagem? Podemos separar forma de conteúdo? Significante de significado, plano de expressão de plano de conteúdo? O ovo da galinha? Para estudar sim. Para ler o Tarot, não.
Entendo que o conceito subjaz à imagem. Mesmo que a figura tenha sido criada a partir de um conceito, se me compreendem.
A diferença entre apreender um dado universo pictórico e a linearidade de uma frase é que a imagem espoca em uma pluralidade de sentidos que se espalham em todas as direções, todos ao mesmo tempo - uma bomba de percepções simultâneas. Como diz Gadamer, a pintura é um presente absoluto. Já a frase só pode acontecer no tempo, no eixo das sucessões. Só posso ler uma palavra de cada vez. E só posso pensar os números um em relação ao outro – o valor do número depende do quem vem antes e do que vem depois.
A análise numerológica requer o plano do conceito imediatamente, o que é muito abstrato se comparado à materialidade das imagens significantes. E evoca um estado diferente de percepção.
Pensar a evolução numérica nos naipes seria correto quando se trabalha com as cartas de pintas, quando temos nas mãos um Tarot como o de Marseille. A iconografia assim o indica, conceitos abstratos advindo de padrões abstratos. Se estamos falando de um sistema imagético, e isso me parece claro e certo, primeiro a imagem.
Aleister Crowley ao inserir nas cartas cores diversas, planos geométricos hipnóticos, títulos que induzem a intepretação e correspondências astrológicas, cabalistiscas e mágicas, altera magnificamente nossa forma de intepretar o baralho, possibilitando um estado alterado de consciência que exige do tarólogo um mergulho profundo. Mas só cria essa sensação porque a habilidade de Frieda Harris o permitiu. Com a imagem.
Então, acho a idéia de Kirtan bacana desde que ao se nortear pela ordenação numérica, o tarólogo use um baralho que apresente as cartas de pintas. Mas não acredito na possibilidade de transportarmos este conhecimento teórico in presentia quando trabalhamos com imagens ilustradas.
Em minha opinião, isso atrapalharia o estímulo número 1 do Tarot que é o poder de sugestão das imagens, o gatilho intuitivo.
O que fazer se a imagem evocar algo diferente do conceito numérico, idealmente correta? O que se privilegia? Pronto, disparou-se a bala errada. Foi-se o gatilho. Neguinho parou pra pensar no meio da leitura, perdeu o fluxo intuitivo.
Sim, é válido termos um tipo de leitura para cada baralho que se usa. E isso é verdadeiro inclusive para os Arcanos Maiores, onde o consenso entre os comentadores do Tarot é bem maior. Quando tiro a Força no Marseille minha sensação é uma. Se for a Lascívia de Crowley, minha percepção é bem diferente embora tanto uma como a outra imagem estejam presas ao que compreendo integralmente sobre o arcano XI.
Tenho em mente também que os arcanos maiores se esclarecem em linha diacrônica e também na ordem paradigmática. Mas o valor numerólogico da imagem pra mim é uma informação de segunda ordem, uma "ancoragem" da carta. Um índice de fundo estrutural. Uma função referencial.
O que é necessário numa aula nem sempre é interessante numa consulta. A estrutura conceitual é um conhecimento integrado que deve ser introjetado e depois esquecido. A informação pulará na hora certa de um dos nossos arquivos. Disparados pelo gatilho das imagens.
Gosto muito das invencionices dos artistas. Criam-se novas formas de ver o mundo. Outros estímulos. Maiores possibilidades interpretativas que podem fazer jus a SUA forma de ver o mundo. Se fulana é uma frequentadora de cartomantes e gosta de leituras divinatórias, talvez não se sinta à vontade com um saniasyn interpretando o Tarot do Osho (ou talvez um novo mundo se descortine pra ela, sei lá). Mas com certeza a leitura do Tarot do Crowley via Gerd Ziegler se adequará completamente a alguém que esteja na India, passando férias na Osholândia.
Não sou dogmática no que se refere ao Tarot, embora só utilize baralhos tradicionais nas minhas leituras. Digamos que sou uma taróloga conscienciosa na hora de interpretar as cartas, sabendo da responsabilidade que envolve a prática do meu trabalho. Leve e concentrada. Em contrapartida, sou uma comentadora de Tarot que estimula com veemência a idéia de que o Tarot é um sistema aberto às mais inimagináveis percepções e traduções artísticas. Não poderia ser diferente.
E como professora, repito: atenha-se aquilo que você vê. Pois se no momento da leitura, ao invés de dar asas à imaginação (não é o Tarot uma arte da imaginação?) estivermos lembrando de conceitos evolutivos, não estaremos mais jogando Tarot. Estaremos fazendo uma outra coisa. O que as cartas têm para dizer a você é exatamente o que aparece à sua frente. Cabe ao tarólogo interpretar o que tem em mãos, pelo tempo que durar aquele eterno presente.
Pena, Kirtan, eu gostaria de ter estado aí com vocês para defender meu ponto de vista. Provavelmente discutiríamos a questão à exaustão e chegaríamos a uma conclusão (ou não). Sejam gentis com uma dama ausente e retruquem, por gentileza.
Zoe de Camaris
Pois bem. Há centos decks inspirados em Pamela Smith. Outros voam ao bel-prazer de seus criadores, como o Tarot Mitológico, por exemplo, que rompe duplamente com o que até então era conhecido. As imagens do Mitológico e de diversos outros Tarots modernos evocam aspectos e interpretações que fazem parte do universo pessoal de cada autor, da sua forma de ver o mundo e da cultura em que estão inseridos.
A proposta de Marcelo é que se atendo ao significado simbólico da numeração, e percebendo-se como esta ordem numérica evolui em cada naipe, teríamos uma ferramenta "descondicionante" da ditadura da imagem. Estratégia perfeita para se manter a coerência. Imagine só você, tarólogo, vagando por uma ilha deserta e só tendo em mãos para saber quando vai sair dali o Tarot de Milo Manara.
Considero a possibilidade também válida para que se aprofunde o conhecimento dos arcanos menores. Mas partir de conceitos se torna um fator complicante quando se trata de ler um Tarot composto de 78 cartas ilustradas com padrões figurativos.
Eu sempre digo aos meus alunos - atenham-se às imagens. É a imagem que comunica no Tarot. É um alfabeto ilustrado, uma linguagem pictórica. É partindo da imagem que se constrói a vistada do tarólogo frente à "arrumação". É assim que as significações vão sendo traduzidas com a delicadeza de quem costura. Se os arcanos maiores, o baralho filosófico, faz parte de um sistema diferente dos arcanos menores; se os dois foram construídos em momentos díspares da história e com finalidades outras, não deveríamos então separá-los por completo? Sim, por que com um sistema eu procederia de uma forma, com outro sistema, eu procederia de outro.
Complica o meio de campo. Afinal, que veio antes, o conceito ou a imagem? Podemos separar forma de conteúdo? Significante de significado, plano de expressão de plano de conteúdo? O ovo da galinha? Para estudar sim. Para ler o Tarot, não.
Entendo que o conceito subjaz à imagem. Mesmo que a figura tenha sido criada a partir de um conceito, se me compreendem.
A diferença entre apreender um dado universo pictórico e a linearidade de uma frase é que a imagem espoca em uma pluralidade de sentidos que se espalham em todas as direções, todos ao mesmo tempo - uma bomba de percepções simultâneas. Como diz Gadamer, a pintura é um presente absoluto. Já a frase só pode acontecer no tempo, no eixo das sucessões. Só posso ler uma palavra de cada vez. E só posso pensar os números um em relação ao outro – o valor do número depende do quem vem antes e do que vem depois.
A análise numerológica requer o plano do conceito imediatamente, o que é muito abstrato se comparado à materialidade das imagens significantes. E evoca um estado diferente de percepção.
Pensar a evolução numérica nos naipes seria correto quando se trabalha com as cartas de pintas, quando temos nas mãos um Tarot como o de Marseille. A iconografia assim o indica, conceitos abstratos advindo de padrões abstratos. Se estamos falando de um sistema imagético, e isso me parece claro e certo, primeiro a imagem.
Aleister Crowley ao inserir nas cartas cores diversas, planos geométricos hipnóticos, títulos que induzem a intepretação e correspondências astrológicas, cabalistiscas e mágicas, altera magnificamente nossa forma de intepretar o baralho, possibilitando um estado alterado de consciência que exige do tarólogo um mergulho profundo. Mas só cria essa sensação porque a habilidade de Frieda Harris o permitiu. Com a imagem.
Então, acho a idéia de Kirtan bacana desde que ao se nortear pela ordenação numérica, o tarólogo use um baralho que apresente as cartas de pintas. Mas não acredito na possibilidade de transportarmos este conhecimento teórico in presentia quando trabalhamos com imagens ilustradas.
Em minha opinião, isso atrapalharia o estímulo número 1 do Tarot que é o poder de sugestão das imagens, o gatilho intuitivo.
O que fazer se a imagem evocar algo diferente do conceito numérico, idealmente correta? O que se privilegia? Pronto, disparou-se a bala errada. Foi-se o gatilho. Neguinho parou pra pensar no meio da leitura, perdeu o fluxo intuitivo.
Sim, é válido termos um tipo de leitura para cada baralho que se usa. E isso é verdadeiro inclusive para os Arcanos Maiores, onde o consenso entre os comentadores do Tarot é bem maior. Quando tiro a Força no Marseille minha sensação é uma. Se for a Lascívia de Crowley, minha percepção é bem diferente embora tanto uma como a outra imagem estejam presas ao que compreendo integralmente sobre o arcano XI.
Tenho em mente também que os arcanos maiores se esclarecem em linha diacrônica e também na ordem paradigmática. Mas o valor numerólogico da imagem pra mim é uma informação de segunda ordem, uma "ancoragem" da carta. Um índice de fundo estrutural. Uma função referencial.
O que é necessário numa aula nem sempre é interessante numa consulta. A estrutura conceitual é um conhecimento integrado que deve ser introjetado e depois esquecido. A informação pulará na hora certa de um dos nossos arquivos. Disparados pelo gatilho das imagens.
Gosto muito das invencionices dos artistas. Criam-se novas formas de ver o mundo. Outros estímulos. Maiores possibilidades interpretativas que podem fazer jus a SUA forma de ver o mundo. Se fulana é uma frequentadora de cartomantes e gosta de leituras divinatórias, talvez não se sinta à vontade com um saniasyn interpretando o Tarot do Osho (ou talvez um novo mundo se descortine pra ela, sei lá). Mas com certeza a leitura do Tarot do Crowley via Gerd Ziegler se adequará completamente a alguém que esteja na India, passando férias na Osholândia.
Não sou dogmática no que se refere ao Tarot, embora só utilize baralhos tradicionais nas minhas leituras. Digamos que sou uma taróloga conscienciosa na hora de interpretar as cartas, sabendo da responsabilidade que envolve a prática do meu trabalho. Leve e concentrada. Em contrapartida, sou uma comentadora de Tarot que estimula com veemência a idéia de que o Tarot é um sistema aberto às mais inimagináveis percepções e traduções artísticas. Não poderia ser diferente.
E como professora, repito: atenha-se aquilo que você vê. Pois se no momento da leitura, ao invés de dar asas à imaginação (não é o Tarot uma arte da imaginação?) estivermos lembrando de conceitos evolutivos, não estaremos mais jogando Tarot. Estaremos fazendo uma outra coisa. O que as cartas têm para dizer a você é exatamente o que aparece à sua frente. Cabe ao tarólogo interpretar o que tem em mãos, pelo tempo que durar aquele eterno presente.
Pena, Kirtan, eu gostaria de ter estado aí com vocês para defender meu ponto de vista. Provavelmente discutiríamos a questão à exaustão e chegaríamos a uma conclusão (ou não). Sejam gentis com uma dama ausente e retruquem, por gentileza.
Zoe de Camaris