24 de junho de 2007

IMAGEM & CONCEITO


Valie Export


São inúmeros os significados contidos no arquétipo da “Mãe”. A fertilidade, a concepção, a gestação, o parto. Em seu bojo, cornucópia, a grandiosa idéia da Natureza e a mudança das estações. É a eclosão de flores na primavera, os frutos maduros no verão, os tapetes de ouro quando caem as folhas, a geada no inverno. Sua correspondência mitológica mais conhecida é Ceres-Deméter, a que traz em si Kore e desdobra-se em Perséfone. É a tradução dos ciclos e, portanto, intemporal. Intemporal como o inconsciente, de onde brotam as imagens arquetípicas.

Na carta da Imperatriz subjaz o modelo ancestral da Mãe-Natureza. Há um diálogo direto, imanente. Seu cetro, o trono, a coroa, o escudo que contém a águia lhe entroniza o poder do feminino. A beleza e a maternidade, a regência venusiana e lunar.

O poder de expressão, o estalo criativo, talvez ainda sem direção definida. Alguns autores afirmam que o processo de gestação estaria mais explícito na Sacerdotisa e que só eclodiria na Imperatriz. O arcano 3 contém o arcano 2, se nos detivermos na idéia de “trunfo” – o arcano seguinte combate e vence seu predecessor.

Ali está a idéia de Amor, da generosidade. Mal aspectada pode indicar a face negra, a Mãe Terrível, o abuso do poder então matricêntrico - a manipulação, a frivolidade e a vaidade exarcebada. Intensa como a Natureza. É a tempestade e o cataclisma, literal e metafórico. Há ambigüidades, enigmas na imagem da Senhora dos Tempos, assim como em todas as cartas que foram pintadas e idealizadas pelo lampejo de um mestre e a pena de uma mulher.


Thoth Tarot
Quando pensamos em um outro elemento da carta, o número, e temos em mente que o 1 é o princípio criativo e masculino e o 2 o passivo e o feminino, o 3 nos traz, imediatamente, a idéia de nascimento, da união realizada, de uma realidade nascente - o fruto, a criança. Para Crowley, para Waite, para diversos comentadores do Tarot de Marseille, na explanação de G.O Medes, entre outros, para economizar citação.

O que poderia indicar que o fruto no arcano III não está disponível seriam as cartas com que a Imperatriz dialoga e a referência tomada da pergunta feita. Nunca só ela mesma. Pois não há “tempo”, como assim o conhecemos, em uma carta de Tarot. Não há presente, passado e futuro no inconsciente. Nós, tarólogos, somos quem o delimita.

No Carro há o homem que decide ir, mas que talvez ainda não tenha ido. Posso ver também Aquiles correndo em sua biga. E posso observar também os cavalos de força desgovernados. Quem dirá se o Condutor da Carruagem foi bem sucedido, será quem dialogará com ela. Há sintaxe no Tarot. Como há paradigmas.

Estávamos discutindo Arcanos Menores. A Imperatriz só compareceu aqui porque a afirmação de que no arcano III o fruto não está disponível me soou estranha. A Imperatriz sabe que o fruto acontece em todos os tempos.



Em uma carta de Tarot está contida, em símbolos, uma parte do mundo. Ali não há um só conceito. Assim como na Confeitaria das Famílias em Curitiba. A decoração em estilo espanhol não traduz um conceito mas sim um apanhado de memórias da proprietária: cheiros, cores, clima. Sua Espanha particular. Não UM conceito.

Se o conceito é o que norteia a imagem... Será o Tarot uma obra de Arte Conceitual? Legal a idéia.


Como o Tarot é um código aberto dentro de uma estrutura fixa, podemos criá-lo. Não seria possível resumir e transformar arquétipos em conceitos? Creio que, no mínimo, quase tudo se perderia.

Na definição de Sol LeWitt, “na Arte Conceitual,a idéia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista usa uma forma conceitual de arte, significa que todo planejamento e decisões são tomadas antecipadamente, sendo a execução um assunto secundário. A idéia torna-se na máquina que origina a arte”.

O resultado final na arte conceitual é dispensável. Vale a idéia, que deve gritar de dentro da obra de arte. Que poderia ser traduzido facilmente em palavras com o recurso de metáforas e da ironia. Mas o suporte aqui não importa.

Uma carta de Tarot não pode ser captada assim. Arquétipos não podem ser contidos em palavras. Ou melhor, não num só recado. A imagem, com sua abertura sincrônica, talvez capture melhor o modelo ancestral pela sua intrínseca simultaneidade.

Definitivamente, Tarot não é Arte Conceitual. Mas está imerso até a cabeça na cultura pop. Nada há o que fazer quanto a isso, só lançar mão de nossos critérios para escolher o que nos agrada ou não - Kelly Key não destruirá os futuros amantes de ópera. O pagode não invalida a música clássica. Quadros de pinheiro pegando fogo, o grito do kitsh, não abolem a existência do Museu do Louvre. O Horóscopo não invalida a Astrologia. Por isso não temo o Tarot das Fadinhas, do Papai Noel, dos Gnomos Coloridos e de Outras Realidades.

Certos tarots são brinquedos e não armas. É a diferença entre um revólver de sabão e a nitroglicerina pura.

O que eu também não entendo é o seguinte: porque usar Tarots de casais transando e crianças correndo se a imagem, nesses casos, se colocam contra o “conceito” no qual se valida, se crê, se acredita?
Se render-se a imagem é coisa de tarólogo dionisíaco, sou dionisíaca. Mas reconheço as divisas: não concebo ler o Housewives num templo, assim como não leria o Thoth numa mesa de bar. Limites. Sou dionisíaca, não surrealista.
Conceitos, imagens, arquétipos, símbolos, números estão fundidos em cada carta de Tarot. Só são separados para que se possa estudar o fenômeno, no melhor estilo século XIX. Os de vertente holística achariam isso um absurdo já que a imagem deveria ser apreendida integralmente, de um só golpe. Não deixa de fazer sentido. Imagens podem ser a mola propulsora de conceitos. Imaginemos o pintor que divaga frente ao mar e deixa sua mente livre para que o pincel traduza emoções, sentimentos e percepções em uma imagem única e intransferível. A imagem (não estou falando do símbolo, que é motivado) não nasce necessariamente de um conceito.

Diz Ernst Cassirer que a gênese das palavras vem de imagens que iluminam, deuses fugazes e instantâneos.

Definir essências pode ser um sinal de agonia. Foi isso que Jor-El fez quando Krypton ia acabar. Há que se saber quando colocar borboletas em caixinhas. Mitos são destruídos porque seu tempo acabou e não há mais quem os transmita. A estabilidade é mantida pelo câmbio, lembrando Crowley e também o chavão básico da Roda da Fortuna: a única coisa que permanece é a mudança. Sem a troca, o ponto que aumenta o conto, acabou-se a história.



Sue Williams


E a História do Tarot é uma história de transformações. Quem tem a razão? Aliette, o maluquete, Eliphas Levi, o monstro da magia, Crowley e seu novo Aeon? Cadê ela, a verdade? Eu acho que vi um gatinho...


O que seria então desconstituir imagens num universo de imagens? Houaiss: desconstituir é desfazer, tirar os “poderes outorgados”. Em bom português, tirar o poder da imagem. Um ato ousado. Que relevo tanto que estou aqui escrevendo uma terceira postagem - não há como desconsiderar essa idéia, no mínimo, polêmica.


A arena, Marcelo, possivelmente não foi bem escolhida - no que me desculpo. Talvez o debate caísse melhor numa lista de discussão ou no orkut, como dita a silenciosa regra que desobedeci. Assim, eu não teria causado a impressão de estar jogando um colega iniciante (que não é iniciante) na cova dos leões. O fato de ter colocado a minha opinião no blog também pode ter sugerido que eu tentei me promover em cima de sua idéia ou detonar contigo. Pra quem não me conhece.

Primeiro, que não estou com essa bola toda – estamos equiparados em idade e conhecimento. Troca de iguais. Segundo, que não estou participando de nenhuma lista e de nenhuma comunidade, nem mesmo as minhas.

Este é o meu espaço, o único em que encontro tempo para escrever e assim mesmo de vez em quando. Então, talvez tenha sido um ato leviano transportar uma discussão que rolava no messenger para o meu espaço. OK. Perdoem-me todos, minha idéia não foi expor a pessoa do Kirtan, mas sim as idéias, nossas velhas conhecidas. E me senti no direito de fazê-lo porque houve aquiescência entre as partes.

Acredito, e sempre irei acreditar no debate de idéias de forma transparente e construtiva, tão importante quanto as próprias idéias. Assim aprendemos, tanto no sentido de conhecer o que não sabíamos, como de reconhecer o que já sabíamos. O problema é que eu me animo com a contenda e entro valendo. É a minha forma de expressão - quanto a isso, não há nada a fazer. Ou se aprecia ou se lamenta.

E é claro que o Marcelo considera a imagem. Nossa conversa e os insights que teve ao analisar o jogo de posturas presente na imagem do Enamorado, foi esclarecedora. Um tarólogo precisa ser apaixonado por imagens, condição sine qua non para o trabalho. Isso é inquestionável. E Kirtan usa bem a imagem, o que se percebe claramente através do flyer que montou para seu Workshop, uma crítica sutil e muito bem montada ao meu post sobre o tédio. Me senti feliz por inspirar o desenvolvimento de um WS – e podem ter certeza que não estou sendo irônica, mas sincera. O cara é bom, não vou dar murro em ponta de faca. Desafios me inspiram e me incitam. E há o direito de resposta.

Reconsideremos então, Marcelo e todos os envolvidos na discussão, a montagem da arena. Parece que a montamos juntos. Não há cova dos leões.

Só para finalizar e voltando às questões teóricas, pois são elas que aqui importam, quando o Kirtan usa o título “Desconstituir Imagens”, quando afirma que “quando se trata de menores só existem conceitos” e que na Imperatriz o fruto não está disponível, eu continuo discordando e argumentando. Lembrando que objetivo de uma discussão não é convencer ninguém a nada, apenas espraiar diferentes pontos de vista que podem vir esclarecer questões importantes sobre esse baralho enigmático, sempre surpreendente e perplexo chamado Tarot.

Abraços para todos,
Zoe de Camaris

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Marcelo, eu vou usar este espaço para comentar a tua afirmação, sobre a Zoe, como professora: “Outra coisa é que se o que interessa é o que a imagem me passa, acho que você está dando um tiro no pé como professora. Viva a imagem, morra o conceito! – e todos os ‘inúteis’ professores e autores de Tarot juntos”, postado num comentário deste blog. Eu também quero emitir a minha posição sobre tema do debate – imagem e conceito na interpretação do tarot – em outro post.
Gostaria de salientar, inicialmente, que embora não o conheça pessoalmente eu tenho um imenso respeito pelo teu conhecimento e pelo teu trabalho com e sobre o tarot. E que as minhas afirmações neste post gostaria que fosse analisada no contexto de um relato pessoal, a partir da afirmação anteriormente citada e com compromisso da ética que o debate intelectual requer,
E para tal, gostaria de apresentar-me, pois acho que neste caso é relevante: eu sou mestre em educação pela PUC-SP (além de ter feito até a qualificação para o Doutorado e mais uma especialização em psicologia da educação). Eu sou também professor do curso de pedagogia; docente em mais de 20 cursos de especialização; assessoro ou assessorei centenas de instituições escolares e dezenas de redes de educação; publiquei livros e artigos; orientei centenas de trabalhos de pós-graduação; ministrei outras centenas de palestras, cursos e oficinas. E a “minha praia” é justamente a organização do trabalho pedagógico na sala de aula: ou seja, as diferentes formas que os educadores e as educadoras encontram para conseguir atingir os seus objetivos. E como fui aluno do Curso de Tarot da Zoe, não poderia deixar de externar o meu posicionamento sobre o tema em debate.
Eu freqüentei as aulas da Zoe como espaço para a minha aprendizagem e, não pude deixar de observá-la em suas práticas pedagógicas. E garanto que foi uma das melhores experiências pedagógicas que pude presenciar, entre as milhares com as quais estive em contato.
O curso iniciou com um modulo introdutório apresentando noções de história e a apresentação do tarot de Marselha, do Thoth de Aleister Crowley e de Rider-Waite. Depois partíamos para o exame das lâminas e a Zoe nos punha a fazer a observação de cada uma delas: nós as observávamos e procurávamos compreender o que ela, a lâmina, poderia querer nos dizer. Depois éramos solicitados a examinar e relatar as impressões que as lâminas provocavam em nós. Utilizando o mesmo método, que tempos descobri, que era o recomendado, ao neófito do tarot, por Jodorowsky (na sua obra central “La via del tarot”): observávamos as laminas ao extremo: as cores, as texturas, as linhas, os objetos, os cenários, os personagens, as ações, as posturas... A Zoe chamava a nossa atenção, até mesmo, para uma visão de outros ângulos (como o tarot new vision) ou ainda nos solicitava que imaginássemos os possíveis tempos anteriores ou posteriores da ação que se verificava em cada uma das lâminas...
Num terceiro momento, a Zoe retornava ao campo conceitual, com aulas que pendiam entre o poético e o erudito, para nos narrar as diversas versões mitológicas e relatar as posições de diversos comentadores. A professora transitava, com maestria e muito rigor pela mitologia, pela numerologia, pela cabala, e pela astrologia. Com rigor acadêmico éramos sempre chamados, também, a contrastar as lâminas de Waite, Crowley e de Marselha e seus respectivos comentadores. Em paralelo, e, além disso, a Zoe ia compondo um quadro de cada linha analítica, fundamentado em palavras-conceituais chaves e as possíveis combinações entre elas.
Nas aulas teóricas, portanto, as análises das imagens eram fundamentais, mas não havia a dicotomia entre imagem-conceito.
Nas aulas de interpretação éramos colocados diante de análises de algumas situações (algumas fictícias e outras não). Quando, por intuição, apresentávamos uma resposta rápida, baseada apenas na leitura formal da imagem, a Zoe nos chamava atenção para os conceitos de diversos autores, em particular, apontando as diferenças entre Waite, Crowley e Barbara Walker. A leitura do tarot não podia estar baseada apenas numa apreensão superficial e reduzida da imagem!
Portanto, caro Marcelo, gostaria de dizer que a sua análise, sobre a Zoe como professora é, felizmente, equivocada. Posso até entender a tua afirmação no contexto de um debate (mais áspero que deveria ser) e que esta dedução pode ter sido apressada. Ou ainda, ter sido utilizada como uma figura retórica no contexto de um debate nervoso. Como disse, posso entender, mas não posso aceita-la! E senti o dever de dizer que, nas aulas da Zoe, em nenhum momento, o conceito está morto e muito menos é declarado (como você afirmou) a suposta inutilidade dos professores e dos autores. Pelo contrario: conceito e imagem estão profundamente imbricados e articulados, as leituras e aos comentários dos autores (tanto clássicos quanto contemporâneos) são elementos centrais no método de organização da aprendizagem e das aulas da Zoe.
Eu, por dever de ofício, observei milhares de vezes a ação docente de educadores, nas mais diversas situações. E após ter sido aluno da Zoe senti-me impressionado, orgulhoso e feliz. Impressionado por assistir aulas extremamente eruditas, mas ministradas poeticamente e com impressionante eficácia pedagógica; orgulhoso pela Zoe ter me aceito entre os seus alunos e compartilhado comigo, com extrema humildade e paixão, todo o seu conhecimento e a sua imensa experiência; e feliz pelo conhecimento, do tarot e da vida, que proporcionou uma mudança em minha vida. Enfim, eu tive uma mestra, no sentido mais clássico e profundo deste termo: a Zoe de Camaris!

Inverno de 2007

Marcos Cordiolli

Anônimo disse...

Zoe

Desconstituir o poder das imagens, e retirar as acepções dos conceitos. No jogo dos que podem mais, sobram Imperatrizes e Imperadores, regendo baralhos por este mundo tarológico. E aonde está o Louco? No Zero, que entre os números romanos não existia, e nesta deliciosa conversa de doidos entre você e o Marcelo, onde ele resolveu ser número! Senão, resta a ele apenas saltar no abismo!

O meu tempo jaz aos meus pés, e desta vez opto por não interferir, apenas ler e apreciar a mente expressa de ambos em palavras. Debates desconstituem idéias, para rarear divergências em uma síntese dionísica, embriagada de novos insights. Ora, nada mais certo, raciocinar é render-se à lógica, mui diferente de compreender, que ocorre quando o Tarot entra em ação.

Apenas ouso discordar quando o assunto é o inconsciente; neste, que existe depois do abismo, é parte do ego, das espadas, do mundo intrínseco da mente. Arquétipos existém além, num mundo mais instintivo, e seu poder é mais intenso, por ser espiritual; pobre deles que passam pelos filtros mentais, muito antes de atingir o físico. Enfim, seguem-se como o Louco quando encara a Diplamacia: Diga "Bom cãozinho!" até você achar uma pedra!!!

Um abraço


Adriano