O Rumor dos Arcanos em “The Village”, de Shyamalan
Todas as terras, nas minhas Visões / Junto co’a minha se encontrarão /
Por nós todos feita, Jerusalém, / Coração no coração e mão na mão.
Jerusalém, A Emanação do Gigante Albion - 1804
William Blake
Prescrições para a manutenção do espaço utópico
1ª Não deixe a cor ruim ser vista: - ela os atrai;
2º Não entre na floresta. É lá que eles vivem;
3º Toque o sino de alerta se eles vierem;
4º Não leia este artigo se não tiver visto o filme !
Grande sacada de Mr. Shyamalan (ou da equipe de marketing) : bolar chamadas para induzir o público a não revelar o desfecho do filme que, se desvendado, “perde a graça”. Ou seja, é criada no espectador uma apreensão similar às prescrições que protegem o Vilarejo, impedindo-o, ou querendo impedi-lo, de contar o final. São três leis para os habitantes da Vila e uma lei para o espectador. Não se revela o fim do filme da mesma forma que o segredo do bosque precisa ser mantido - dupla articulação, uma similitude de significados que se associa ao marketing cinematográfico. Perfeito. Perfeito porque funciona.
O Muro
O filme “A Vila” metaforiza fobias do homem moderno. Até aí, nada de novo. Aliás, a surpresa que o diretor nos reserva é de uma obviedade que amedronta - nada está seguro. A inocência agoniza em um caldeirão perpétuo. Ou nos trancamos a sete chaves ou os monstros nos comem. Realidade? Exagero?
Alguns lêem o filme como uma apologia ao puritanismo - uma apreensão ingênua. Outros, como uma crítica ao governo Bush ou um pastiche de “Matrix”. Todas as leituras são válidas, o texto é polissêmico.
Uma das facetas que me salta aos olhos em “The Village” é a criação de uma cidade utópica no passado, já que as cidades “perfeitas” do cinema preferem habitar o futuro (ou um não-tempo). E também a possibilidade de discutir o Amor e a Confiança – questão importantíssima e libertadora e que, em minha opinião, torna o filme instigante.
Quanto ao primeiro item, não é de se estranhar que um filme que trate das utopias na contemporaneidade desloque o lugar ideal, a eutopia, para um passado que corresponde a uma idéia romântica. O futuro visto do presente traz a idéia de um espaço distópico, degradado. Se a questão é a segurança, o passado prometeria maiores certezas ou a ilusão de alguma garantia, mesmo que signifique retrocesso – abrir mão do que é conhecido, principalmente em termos tecnológicos.
O preço da segurança em “The Village” é a perda da liberdade. E é natural da condição humana não aceitar grades, prisões. A não ser que o cativeiro seja a própria ignorância: longe dos olhos, longe do coração - não é o que diz o fabulário sentimental? A ignorância nos destina ao não-exercício da vontade. Optar nem sempre é prazeroso, mas é muito irritante quando esse direito nos é tomado. Nem que a nossa atitude seja como a do pássaro que sempre viveu em cativeiro – ao abrir-se da portinhola, volta-se correndo para o espaço que parece seguro.
Imaginemos então dois círculos: o que separa o vilarejo do bosque e o que separa o bosque da civilização. São dois os muros. O primeiro é um “cercado” que protege a inocência, assim como é dramatizado no arcano XIX, O Sol. Até a cor amarela das capas, tintas e bandeirolas que sinalizam os limites no filme e que reproduzem a cor do Sol contribuem para facilitar a analogia.
Todas as terras, nas minhas Visões / Junto co’a minha se encontrarão /
Por nós todos feita, Jerusalém, / Coração no coração e mão na mão.
Jerusalém, A Emanação do Gigante Albion - 1804
William Blake
Prescrições para a manutenção do espaço utópico
1ª Não deixe a cor ruim ser vista: - ela os atrai;
2º Não entre na floresta. É lá que eles vivem;
3º Toque o sino de alerta se eles vierem;
4º Não leia este artigo se não tiver visto o filme !
Grande sacada de Mr. Shyamalan (ou da equipe de marketing) : bolar chamadas para induzir o público a não revelar o desfecho do filme que, se desvendado, “perde a graça”. Ou seja, é criada no espectador uma apreensão similar às prescrições que protegem o Vilarejo, impedindo-o, ou querendo impedi-lo, de contar o final. São três leis para os habitantes da Vila e uma lei para o espectador. Não se revela o fim do filme da mesma forma que o segredo do bosque precisa ser mantido - dupla articulação, uma similitude de significados que se associa ao marketing cinematográfico. Perfeito. Perfeito porque funciona.
O Muro
O filme “A Vila” metaforiza fobias do homem moderno. Até aí, nada de novo. Aliás, a surpresa que o diretor nos reserva é de uma obviedade que amedronta - nada está seguro. A inocência agoniza em um caldeirão perpétuo. Ou nos trancamos a sete chaves ou os monstros nos comem. Realidade? Exagero?
Alguns lêem o filme como uma apologia ao puritanismo - uma apreensão ingênua. Outros, como uma crítica ao governo Bush ou um pastiche de “Matrix”. Todas as leituras são válidas, o texto é polissêmico.
Uma das facetas que me salta aos olhos em “The Village” é a criação de uma cidade utópica no passado, já que as cidades “perfeitas” do cinema preferem habitar o futuro (ou um não-tempo). E também a possibilidade de discutir o Amor e a Confiança – questão importantíssima e libertadora e que, em minha opinião, torna o filme instigante.
Quanto ao primeiro item, não é de se estranhar que um filme que trate das utopias na contemporaneidade desloque o lugar ideal, a eutopia, para um passado que corresponde a uma idéia romântica. O futuro visto do presente traz a idéia de um espaço distópico, degradado. Se a questão é a segurança, o passado prometeria maiores certezas ou a ilusão de alguma garantia, mesmo que signifique retrocesso – abrir mão do que é conhecido, principalmente em termos tecnológicos.
O preço da segurança em “The Village” é a perda da liberdade. E é natural da condição humana não aceitar grades, prisões. A não ser que o cativeiro seja a própria ignorância: longe dos olhos, longe do coração - não é o que diz o fabulário sentimental? A ignorância nos destina ao não-exercício da vontade. Optar nem sempre é prazeroso, mas é muito irritante quando esse direito nos é tomado. Nem que a nossa atitude seja como a do pássaro que sempre viveu em cativeiro – ao abrir-se da portinhola, volta-se correndo para o espaço que parece seguro.
Imaginemos então dois círculos: o que separa o vilarejo do bosque e o que separa o bosque da civilização. São dois os muros. O primeiro é um “cercado” que protege a inocência, assim como é dramatizado no arcano XIX, O Sol. Até a cor amarela das capas, tintas e bandeirolas que sinalizam os limites no filme e que reproduzem a cor do Sol contribuem para facilitar a analogia.
Interessante que a idéia de uma proteção circular esteja presente, por exemplo, na organização físico-espacial de diversas tribos indígenas, criando uma fronteira que separa o mundo da cultura do mundo da natureza. É claro que o nativo se sente muito mais à vontade no seu habitat do que nós, os ditos civilizados. Mas ainda assim a natureza o apavora. E o círculo formado pelas tabas o abriga, separando o que é conhecido daquilo que causa medo - tudo aquilo de que não se tem consciência ou que não se quer ver. O Sol em uma tiragem de tarô também pode significar proteção. Um espaço de fruição da inocência.
O segundo círculo/elipse que estaria separando o bosque da civilização é a guirlanda, o têmeno protetor do mundo. No arcano XXI, O Mundo, do Tarô Visconti-Sforza, dois anjos (os gêmeos do Sol) erguem a Jerusalém Celeste envolvida por uma bolha. A Nova Jerusalém do poema de William Blake, mítica cidade mental da liberdade e da paz e que, juntamente com outras materializações literárias sobre cidades utópicas, poderia ter inspirado o Vilarejo de Shyamalam. Os anjos são os guardiões da inocência.
O Amor e a Escolha
A possibilidade de escolha está no eixo do Tarô: o Arcano dos Enamorados, também intitulado de Os Amantes. Pontual que uma imagem relacionada ao Amor trabalhe juntamente com a questão do livre-arbítrio - principalmente no arcano VI do Tarô de Marselha ou conjuntos de lâminas inspirados nele, já que nos decks ingleses a eleição não transparece imageticamente, como se nota nas figuras abaixo:
A possibilidade de escolha está no eixo do Tarô: o Arcano dos Enamorados, também intitulado de Os Amantes. Pontual que uma imagem relacionada ao Amor trabalhe juntamente com a questão do livre-arbítrio - principalmente no arcano VI do Tarô de Marselha ou conjuntos de lâminas inspirados nele, já que nos decks ingleses a eleição não transparece imageticamente, como se nota nas figuras abaixo:
Tarô Waite
No palco das relações amorosas sempre está em cheque a opção, o receio de uma seleção equivocada, a medida da confiança e uma prova moral. O êxito ou o fracasso nessa prova é que irá determinar o desenrolar dos acontecimentos.
No filme, observamos um triângulo amoroso: Lucius, Ivy e Noah, relação dinâmica e que irá impulsionar toda a seqüência dos fatos e desenlaces sob a égide do Arcano VI, O Enamorado. Vamos agora conhecer as relações entre os protagonistas e as idéias-força:
Oswald Wirth, um dos mais importantes estudiosos do Tarô, marca o princípio da inteligência individual nas seguintes imagens: O Mago, A Força, O Enforcado e O Louco. Essas lâminas compõem a primeira das tétradas comparativas do Tarô em uma quadrangulação de forças que se esclarece por aproximação e analogia, a saber: O Mago tem a potência e a aptidão para instruir-se em todas as coisas, enquanto A Força, em um estágio plenamente instruído, dedica-se a obras práticas. No Enforcado o rendimento é improdutivo, mesmo que os talentos sejam reconhecidos. Seu pensamento demasiado sublime para fazer-se inteligível. Já O Louco, dono de um intelecto incapaz, não tem meios para compreender o que o rodeia.
Parece claro: Lucius Hunt é O Mago; Ivy Walker, A Força; Noah Percy, O Louco. E todos passam, em momentos diferentes, pela condição do Enforcado.
Lucius é aquele que traz em suas mãos o poder da mudança. Deseja ir buscar remédios para que ninguém mais padeça (como a criança falecida pela qual um pai chora no início do filme). Lucius Hunt é aquele que primeiro desafia o perigo e o único que se habilita a usar de seu potencial em prol da comunidade. É importante lembrar que O Mago faz tudo através de suas mãos e é através delas que Lucius indica o caminho para Ivy. Quando ele a toca, alguma magia se faz e tudo passa a se desencadear de forma vertiginosa. Lucius Hunt, como objetiva seu nome, é a Luz da Caça (o caçador da luz?) Lucius é a luz que ilumina o caminho de Ivy. O Mago existe em potência, não necessariamente em ação. E assim que Lucius fica imobilizado se torna O Enforcado. Quem é age é Ivy, A Força, impulsionada pela confiança, pelo amor e também pelo desespero.
Ivy significa “a videira”, aquela que dá a vida. A semelhança com “Eva” é nítida, ou seja, mulher primeva que inicia algo novo. Ivy é a cega que enxerga. A que confia cegamente. Ivy Walker (Walker é aquele que caminha), dona de uma sensorialidade apurada, coloca em ação o desejo de Lucius. É a potência do Mago que se estende e se realiza na Força. Ivy não vê as cores que separam o Vilarejo do Bosque. Sua compreensão da vida é outra – difusa e, no entanto, pontual. Ivy, no bosque, é a imagem do Eremita. Traz na sua capa a cor do sol e a luz da lamparina. Sozinha. Muitas vezes, o Amor exige esta jornada solitária, em busca da redenção. Restam-nos as experiências guardadas na sacola do Louco.
Ivy significa “a videira”, aquela que dá a vida. A semelhança com “Eva” é nítida, ou seja, mulher primeva que inicia algo novo. Ivy é a cega que enxerga. A que confia cegamente. Ivy Walker (Walker é aquele que caminha), dona de uma sensorialidade apurada, coloca em ação o desejo de Lucius. É a potência do Mago que se estende e se realiza na Força. Ivy não vê as cores que separam o Vilarejo do Bosque. Sua compreensão da vida é outra – difusa e, no entanto, pontual. Ivy, no bosque, é a imagem do Eremita. Traz na sua capa a cor do sol e a luz da lamparina. Sozinha. Muitas vezes, o Amor exige esta jornada solitária, em busca da redenção. Restam-nos as experiências guardadas na sacola do Louco.
E Noah Percy é a encarnação do Louco. Percy, de “Percival”, aquele que perfura o vale - em outra possibilidade interpretativa, o que perfura o véu. Quem vê através do véu é Iyy, a cega. Noah, a inocência de mãos dadas com a alienação. Noah irá tornar-se o Enforcado porque é através dele que a salvação chega à vilarejo por vias inesperadas. É através dele também que o segredo será mantido. A sua morte garante a segurança de todos. Ele é o bode expiatório do grupo.
É através da morte de Noah que Lucius poderá sobreviver.
E para que alguém percorra o caminho com sucesso é necessária a união, a força das duas famílias – os que caminham (Walker) e os que caçam (Hunt), o que já se insinua na relação platônica de Alice e Edward, a mãe de Lucius e o pai de Ivy, respectivamente.
O Conselho, formado pelas figuras parentais (primeiras 5 imagens do tarô), são os anciões da Vila. Alice e Edward cumprem o papel da Imperatriz e do Imperador, arquétipos materno e paterno. A Justiça é representada pelo Conselho, fórum onde se discute todas as ações da comunidade. O Julgamento, além de estar presente nos veredictos, se faz sentir em todas as situações de irrupção – o alarme, os barulhos estranhos que vêm do bosque, as marcas feitas nas portas. É bom lembrar que o arcano do Julgamento é o único que apresenta um instrumento musical. E que chama a atenção de forma direta, incontestável - o som sempre nos pega de surpresa.
O Hierofante também é Edward, no papel de professor. A cena que o retrata na escola nos remete imageticamente ao arcano V. Na carta de tarô, temos os discípulos com os rostos voltados para o Pontífice. Na cena do filme, Edward é retratado de costas, com os alunos olhando para ele. Uma postura que insinua um segredo? Que existe algo por trás da história daqueles de quem não pode se dizer o nome?
Os arcanos se misturam, se interpenetram - Ivy tem elementos da Estrela (a sensorialidade diferenciada, percepção sintonizada, apurada, e também a inocência da Mulher-Estrela), da Força (aquela que doma o medo) e do Eremita (aquele que caminha protegido por um manto e que carrega uma lanterna iluminando seu caminho).
A cena em que Ivy coloca a mão para fora de casa e um daqueles de quem não se fala o nome se aproxima, momento exato em Lucius vem e toma sua mão, é a prefiguração, o prenúncio de Ivy enfrentando o medo na floresta. Lucius lhe dá confiança necessária para enfrentar a Morte.
A cor vermelha, proibida, é O Diabo. O sangue, o desregramento, a paixão, o sexo, a violência. Tudo que deve ser evitado para que não se perca a inocência e para que a Vila continue protegida. A fruta que não deve ser colhida - a maçã proibida de Ivy-Eva? Seria a cor vermelha a que Ivy pressente na aura de Lucius? Lucius-Lucifer, o anjo luminoso? Um paraíso perdido? Quando Noah Percy cai num buraco da floresta, é nítida a imagem do anjo caído. Vale rever a cena.
Dizem que existe um número determinado de temas no mundo e que todas as histórias derivariam destes arquétipos/protótipos. Eu lembraria da Flor Azul dos românticos alemães, o símbolo do impossível. E do conto da Rosa Azul, em que o príncipe, para salvar a princesa de uma mal terrível que a levaria à morte certa, precisa atravessar montanhas, florestas, perigos e trazer-lhe o remédio exato. A única flor azul que nasce no topo de uma única montanha. Em mundo em que o amor não raro é confundido com tesão e sexo, em que a confiança foi substituída pelo “ninguém é de ninguém” e pela omissão, é no mínimo constrangedor – para alguns – e emocionante – para outros – que o tema do amor romântico ainda faça tanto sucesso.
"The Village" rememora que o Amor e a Confiança movem montanhas, iluminam o caminho de cegos, promovem a Magia do Impossível. Mas sem esquecer que as frutas vermelhas sempre estão no meio do caminho.
Zoe de Camaris
Ofereço este artigo para João Acuio, Alexey Dodsworth e Janaina Leite. Grata pela interlocução: João no cinema e a caminho de casa, Alexey na Astréia e Jana no Messenger. Demorei mas publiquei. Incrível como fico me enrolando.
7 comentários:
%@*#(#(#*, Zoe!!!
VOCÊ CONSEGUIU SE SUPERAR ( e isso não é pouca coisa!)
Este artigo é uma das melhores coisas que já li sobre Tarot, está simplesmente maravilhoso!
Parab´ns, querida, beijos da sua admiradora,
Melissa Mell
ZOE!
Voce se superou mais uma vez. Seu texto sobre "The Village" é um show. Amei de montão!
Beijos
adorei o sistema de comentários.
vou alugar o filme antes e depois leio.
e que coincidência: a carta de edward (husband) é o hierofante.
beijo
urru
ótimo filme, sensacional leitura
beijos, gatona...
Parabéns! Indicaram o seu blog em uma comunidade do orkut. Nossa, eu não havia me dado conta das imagens e mensagens incutidas no filme. Passei a gostar mais do filme após a sua análise. Além do que a leitura é muito gostosa
Zoe,
Sem comentários!!! O que falar mais? Adorei a interpretação e quando lia podia rever as cenas na minha cabeça nitidamente!!!!
Parabéns!!!
Depois de muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito tempo oia eu comentando.
Gostei muito do filme, principalmente por ele mostrar que sem a liberdade a segurança se torna um problema e que a felicidade exige que riscos sejam corridos.
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