"A tarefa não é a sua individuação, mas a individuação do anjo"
- Corbin
Sete ‘Mil Vezes’ de Copas. A lâmina chama muita atenção, principalmente no baralho Waite-Smith.
Um homem de costas com roupas negras olha para sete taças envolvidas em nuvens acinzentadas. De dentro delas, um castelo, uma serpente, um dragão, jóias, uma coroa de louros, o rosto de um anjo e uma imagem fantasmática com o rosto coberto. A Musa, a Virgem. É uma imagem de sonho, talvez de pesadelo, se observarmos as mãos negras da figura que admira impactada o conteúdo das taças.
São diversas as opções, inúmeras as possibilidades. É quase impossível dividir um círculo em 7 partes. Um desafio coordenar a ordem do ternário, mental ou espiritual, em harmonia com a ordem do quaternário, terrena (3+4=7).
Netzah.
Então o 7 de copas é chamado de O Senhor do Êxito Ilusório. Ou, a “Vitória da Mulher”, o que é bem curioso. O predomínio da Anima. De Maia, a ilusão. Uma imagem venusiana, netuniana, lunar.
Via Úmida. Ordem da Grã Sacerdotisa.
Se relacionarmos a numeração das cartas menores com os arcanos maiores, chegamos ao Carro. O condutor precisa saber usar as rédeas do invisível, senão a carroça desembesta. O Carro é corpo do Condutor. Quem o dirige é o espírito atuante.
No entanto, me parece estranho que esta carta tenha um significado considerado “difícil”, mesmo quando bem dignificada. Diz Waite: “Belos favores, imagens de reflexão, sentimento, imaginação, coisas vistas no espelho da contemplação; algumas consecuções nesses graus, mas nada é sugerido de permanente ou substancial”. Perfeito. Mas praticamente todas as interpretações posteriores parecem fixar-se na última parte da reflexão de Edward Waite.
O surgimento do 7 de copas numa leitura é interpretado como um indício da diversidade de opções. De alternativas ilusórias. Enganos. Excesso de expectativas. Do possível uso de alteradores de consciência, intoxicação. Mesmo que o número 7 signifique vitória, controle. O Poder Mágico em toda sua força, a Teurgia (atuar sobre os deuses). A dominação da matéria pelo espírito. E a matéria é considerada feminina, no que concordo. Mas sempre negativada? É claro que inverter a ordem dos fatores não dá certo. Porque esta carta não fala do domínio da matéria sobre o espírito. Mas de uma forma aquática e aérea, portanto, da ALMA, agindo sobre a matéria.
A alma rege a orquestração. A sua e a do mundo.
E alma tem o corpo de uma mulher.
“Perigo, Will Robinson, perigo!” – diz o robô. Perdidos no Espaço. Compreendo perfeitamente, ainda mais depois que Aleister Crowley denominou como “Deboche” o 7 de copas, melando (literalmente) a imagem logo de saída. Vênus em Escorpião. Plutão na jogada.
Contudo, entretanto, todavia.... Será que não deveríamos observar esta carta sob uma perspectiva menos positivista? Perdido no espaço, o robô conceitua: "Positivismo é o sistema criado por Augusto Comte (1798-1857) que se propões a ordenar as ciências experimentais consideradas o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento do que seriam especulações, como a Metafísica ou a Teologia".
Lembremo-nos que muitas das interpretações fixadas com relação ao Tarot são do século XIX, começo do XX. E que os magistas desta época, queiram ou não, são signatários do discurso cientificista. Quem sabe, no intuito de “validar” o Tarot tenham sido bastante racionalistas ao interpretar as imagens. Os comentadores que se seguiram pouco acrescentam aos significados dados a esta carta numa perspectiva menos comprometida.
Há que se ler Gaston Bachelard (o noturno), James Hillman,
As Estruturas Antropológicas do Imaginário, obra prima de Gilbert Durand. E para entrar mesmo no mundo da imaginação e do devaneio, só mesmo com os poetas. Deixar a imaginação colorir todas as asas, mesmo aquilo que não voa. Renomear o mundo. Intoxicar-se de música. Caminhar sem destino, observar sem conclusões. A imaginação é um território de suprema liberdade do espírito.
Para compreender o Tarot talvez seja uma boa saída esquecer os manuais de interpretação.
São 7 as Maravilhas do Mundo, os anões da Branca de Neve. Sete os portais de Tebas, 7 léguas para as botas. Sete mares nunca d'ante navegados, 7 chacras, 7 dias da semana. Sete cabeças da Hidra de Lerna. São quatorze (são infinitas) as portas do labirinto de Asterión, em Borges.
Mise em abysme. Tudo existe muitas vezes no plano da imaginação. Imagine, diz John Lennon.
E se a realidade, a realidade “ordinária” é complexa - simular idealmente a estabilidade não seria a real fantasia? Até que ponto o conselho:
“coloque os pés no chão e dedique-se a reflexões fundamentadas” faz sentido? E se estivermos frente a uma pessoa enredada nas malhas cruéis da realidade e que não consegue ver na sua frente nada além de compromissos, cobranças, expectativas internas e alheias? Não seria este o momento de recriar seu mundo? E como recriá-lo sem soltar as rédeas que entre muitas voltas nos levam sempre pelas mesmas estradas e que acabam em becos sem saída?
O Tarot é uma arte da “imaginação”. É através das imagens e do poder de desvincular-se da realidade ordinária que se torna possível iluminar conflitos.
Sim, é uma arte paradoxal.
O plano racional é comunicado por palavras. O inconsciente comunica-se por imagens. E se as imagens não podem emergir, como reconhecer a verdade do inconsciente?
E que é a “verdade” em tempos de panvirtualismo?
Convém definir, diferenciar, a palavra
imaginação da palavra
fantasia. Diz Rachel Pollack, citando o poeta S.T. Coleridge, que ambas as noções afastam a mente das percepções comuns. A imaginação nos levaria a uma percepção da verdade subjacente vinda do inconsciente enquanto a fantasia produziria imagens mentais que podem excitar, mas às quais faltaria um significado real, pois procederiam do ego.
Pollack debruça-se aqui sobre o Príncipe de Copas, aquele que olha para uma taça vazia, ou seja, para si mesmo. Ao falar do seu companheiro Pajem, aponta que este vê um peixinho saindo de sua taça. E que ali sim a imaginação estaria no seu devido lugar. A infantilidade, a inocência do Pajem justificaria um tempo em que a fantasia e a contemplação seriam adequadas.
Embora goste da diferenciação de Coleridge, me dou ao desplante de discordar de Pollack quando relaciona a imaginação e a fantasia à imaturidade.
A imaginação sempre foi considerada “a louca da casa”, disso sabem os franceses. É uma palavra vilipendiada. É vero que a imaginação excessiva e/ou a perda dos limites pode levar alguém à loucura. Mais isso é hipostasiar um dos pratos da balança. Pesar a mão. Pensemos na justa medida. O excesso de imaginação nos enlouquece, nos torna inadequados socialmente, dificulta o discernimento. Torna-se delírio. A falta de imaginação nos faz parvos, secos, tolhidos de graça e matizes.
É bom não esquecer, como nos diz Neil Gaiman, que o primeiro nome de Delirium é Deleite - ainda na infância dos Perpétuos.
É impossível lançar as cartas e ser razoavelmente bem sucedido sem o poder de imaginar, sem se colocar aberto às infinitas possibilidades do 7 de copas. E não é seu título, a Imaginação?
“Cair na real” nem sempre é uma boa.
Agora vou para minha varanda deitar na rede rosa-choque entre as flores, numa bela tarde de domingo, depois de uma semana punk. E olhar para o céu, namorar o vento, chamar todos os meus amiguinhos imaginários e fazer uma festa daquelas. Se Sorte sorrir pra mim, aparece um beija-flor.
Mas aí já é Desejo.
Zoe de Camaris