No espetáculo “Para não morrer”, Nena Inoue aciona
o arquétipo da Grã-Sacerdotisa, arcano II do Tarot.
Nua,
coberta apenas pelos cabelos que caem como um véu sobre seu corpo, cercada
de jarras e copos d'água, o fundo escuro contrastando com o trono branco
manchado de vermelho, eis que se apresenta a personagem concebida por Nena
Inoue, como num altar. Da velha que fala pela boca torta, observa-se a mão
direita livre, a esquerda crispada, as pernas afastadas em forma de pinça de
caranguejo.
O texto, baseado
em trechos do livro “Mulheres”, de Eduardo Galeano, dá voz a histórias de
mulheres que lutaram pela liberdade. Mulheres caladas que precisam ter suas
histórias contadas, “para não morrer”, para não caírem no esquecimento. Um
discurso sobre o silêncio.
A Sacerdotisa no
Tarot é o arquétipo do mistério feminino, daquilo que não pode ser compreendido
com palavras. No entanto, traz um livro em seu colo. A personagem/entidade de
Nena Inoue abre o livro e através de uma fala prejudicada pela idade ou por uma
doença, dá voz a estas mulheres, a todas as mulheres, trazendo à tona os nossos
silêncios engasgados.
As mulheres de
Galeano sangram. E nós sangramos junto. No arcano II do Tarot dormem os enigmas
da concepção, da menarca e da menopausa. A lua, uma pitonisa, uma silbila, uma
bruxa. Sua voz é a voz da alma. Sua mensagem está além da lógica. Apesar dos
cabelos cobrindo sua nudez, as pernas abertas da atriz remetem à Sheela Na Gui
(celta) e à Gauri (indiana), deusas com o sexo escancarado. Na Sacerdotisa
habitam, em potência, todas as deusas da fertilidade.
A água em
diversos jarros e copos cercando o trono parece conter um desejo de
espalhar-se. A personagem enche os copos mantendo a distância necessária para
aludir à quedas d'água. Água ainda assim insuficiente para lavar o sangue da
experiência feminina, uma dor que parece estar sempre atrelada a alguma forma
de amor. Amor pela terra, pelos filhos, pelo homem.
As polaridades,
que na carta da Sacerdotisa estão marcadas por duas colunas, na cena se deixam
entrever pela mão esquerda crispada (lado receptivo) e pela mão direita livre
(lado ativo). O feminino magoado está no lado esquerdo. E destrava-se pelo
poder da expressão de sua mão direita.
A Velha ri. Mas
suas histórias querem nos fazer chorar. Mandos e desmandos, assassinatos,
estupros, raptos. E o aparecimento de Maria Bueno, aquela que virou santa, no
meio da história. A moça degolada pelo seu “namorado”, o soldado Diniz, recebe
velas e rosas vermelhas no Cemitério Municipal de Curitiba, beatificada pelo
povo.
A Sacerdotisa no
Tarot também é conhecida pelo título “A Papisa”. Eu poderia contar, por
exemplo, a história Manfreda Visconti, eleita como a primeira Papisa da seita
gugliemita e que, segundo seus seguidores, iniciaria uma era onde as mulheres
seriam as representantes de Deus na terra. A Igreja rapidamente cortou as asas
dos gugliemitas e queimou a irmã Manfreda em 1300, exatamente o ano em que a
nova era teria início. Cem anos mais tarde a família Visconti encomendou o
primeiro jogo de cartas de Tarot e dentre os seus trunfos, a carta de numero
dois viria a ser chamada de “A Papisa”. Ou seja, a história do Tarot também
está ligada a um sacrifício feminino.
São diversas as
convergências iconográficas e de sentido entre a carta e a cena. Saí do teatro
com a impressão que Nena havia bebido algo dessa imagem no planejamento visual
e no trabalho de corpo. Mas ela me disse que não. Curioso. Realmente, se você
quer escutar a Sacerdotisa do Tarot falando, ainda dá tempo de ver o
espetáculo.
E já que estou
aqui costurando similaridades, a parceria de direção da peça é com a
preparadora vocal Babaya. Fica difícil não lembrar de Baba-Yaga, a bruxa do
folclore eslavo. Mas antes que eu comece a viajar demais, que fique o mistério
no seu lugar preferido. Que é permanecer no espaço do mistério e da reflexão.
Zoe de Camaris
P.S.: Além da idealizadora e atriz Nena Inoue, a peça tem parceria de direção de
Babaya Morais, dramaturgia de Francisco Mallmann, iluminação de Beto Bruel,
figurino de Carmen Jorge e trilha original de Jo Mistinguett.
Espaço Fantástico das Artes
Alameda Princesa Izabel, 465
de 13 a 22 de outubro de 2017
às 20h.
Espaço Fantástico das Artes
Alameda Princesa Izabel, 465
de 13 a 22 de outubro de 2017
às 20h.
Pague
quanto vale/ Vale quanto pesa!
Os ingressos para o espetáculo seguem a política do “Pague Quanto Vale”, no
qual o espectador tem a possibilidade de decidir o valor que deseja pagar pelo
ingresso da peça.
3 comentários:
Que bom seu retorno!
Achi w
Já disse que amo esse outro olhar sobre a mesma mulher/figura? Pois amo.
Gracias querida.
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