4 de outubro de 2017

A Sacerdotisa, com Nena Inoue


No espetáculo “Para não morrer”, Nena Inoue aciona o arquétipo da Grã-Sacerdotisa, arcano II do Tarot.
Nua, coberta apenas pelos cabelos que caem como um véu sobre seu corpo, cercada de jarras e copos d'água, o fundo escuro contrastando com o trono branco manchado de vermelho, eis que se apresenta a personagem concebida por Nena Inoue, como num altar. Da velha que fala pela boca torta, observa-se a mão direita livre, a esquerda crispada, as pernas afastadas em forma de pinça de caranguejo.
O texto, baseado em trechos do livro “Mulheres”, de Eduardo Galeano, dá voz a histórias de mulheres que lutaram pela liberdade. Mulheres caladas que precisam ter suas histórias contadas, “para não morrer”, para não caírem no esquecimento. Um discurso sobre o silêncio.
A Sacerdotisa no Tarot é o arquétipo do mistério feminino, daquilo que não pode ser compreendido com palavras. No entanto, traz um livro em seu colo. A personagem/entidade de Nena Inoue abre o livro e através de uma fala prejudicada pela idade ou por uma doença, dá voz a estas mulheres, a todas as mulheres, trazendo à tona os nossos silêncios engasgados.
As mulheres de Galeano sangram. E nós sangramos junto. No arcano II do Tarot dormem os enigmas da concepção, da menarca e da menopausa. A lua, uma pitonisa, uma silbila, uma bruxa. Sua voz é a voz da alma. Sua mensagem está além da lógica. Apesar dos cabelos cobrindo sua nudez, as pernas abertas da atriz remetem à Sheela Na Gui (celta) e à Gauri (indiana), deusas com o sexo escancarado. Na Sacerdotisa habitam, em potência, todas as deusas da fertilidade.
A água em diversos jarros e copos cercando o trono parece conter um desejo de espalhar-se. A personagem enche os copos mantendo a distância necessária para aludir à quedas d'água. Água ainda assim insuficiente para lavar o sangue da experiência feminina, uma dor que parece estar sempre atrelada a alguma forma de amor. Amor pela terra, pelos filhos, pelo homem.
As polaridades, que na carta da Sacerdotisa estão marcadas por duas colunas, na cena se deixam entrever pela mão esquerda crispada (lado receptivo) e pela mão direita livre (lado ativo). O feminino magoado está no lado esquerdo. E destrava-se pelo poder da expressão de sua mão direita.
A Velha ri. Mas suas histórias querem nos fazer chorar. Mandos e desmandos, assassinatos, estupros, raptos. E o aparecimento de Maria Bueno, aquela que virou santa, no meio da história. A moça degolada pelo seu “namorado”, o soldado Diniz, recebe velas e rosas vermelhas no Cemitério Municipal de Curitiba, beatificada pelo povo.
A Sacerdotisa no Tarot também é conhecida pelo título “A Papisa”. Eu poderia contar, por exemplo, a história Manfreda Visconti, eleita como a primeira Papisa da seita gugliemita e que, segundo seus seguidores, iniciaria uma era onde as mulheres seriam as representantes de Deus na terra. A Igreja rapidamente cortou as asas dos gugliemitas e queimou a irmã Manfreda em 1300, exatamente o ano em que a nova era teria início. Cem anos mais tarde a família Visconti encomendou o primeiro jogo de cartas de Tarot e dentre os seus trunfos, a carta de numero dois viria a ser chamada de “A Papisa”. Ou seja, a história do Tarot também está ligada a um sacrifício feminino.
São diversas as convergências iconográficas e de sentido entre a carta e a cena. Saí do teatro com a impressão que Nena havia bebido algo dessa imagem no planejamento visual e no trabalho de corpo. Mas ela me disse que não. Curioso. Realmente, se você quer escutar a Sacerdotisa do Tarot falando, ainda dá tempo de ver o espetáculo.
E já que estou aqui costurando similaridades, a parceria de direção da peça é com a preparadora vocal Babaya. Fica difícil não lembrar de Baba-Yaga, a bruxa do folclore eslavo. Mas antes que eu comece a viajar demais, que fique o mistério no seu lugar preferido. Que é permanecer no espaço do mistério e da reflexão.

Zoe de Camaris


P.S.: Além da idealizadora e atriz Nena Inoue, a peça tem parceria de direção de Babaya Morais, dramaturgia de Francisco Mallmann, iluminação de Beto Bruel, figurino de Carmen Jorge e trilha original de Jo Mistinguett.

Espaço Fantástico das Artes
Alameda Princesa Izabel, 465
de 13 a 22 de outubro de 2017
às 20h.

Pague quanto vale/ Vale quanto pesa!

Os ingressos para o espetáculo seguem a política do “Pague Quanto Vale”, no qual o espectador tem a possibilidade de decidir o valor que deseja pagar pelo ingresso da peça.

3 comentários:

Irene Cardoso disse...

Que bom seu retorno!

Unknown disse...

Achi w

Unknown disse...

Já disse que amo esse outro olhar sobre a mesma mulher/figura? Pois amo.
Gracias querida.