
Alleged Tarot
Era uma vez um homem que precisava escolher entre um carro vermelho e um cavalo castanho. Se ele escolhesse O Carro, não haveria nenhum problema. Seria um corvette coupê maravilhoso e só lhe traria alegrias. Mas ele escolhesse o cavalo, haveria dois problemas pois, no dia seguinte, ao se encaminhar à estrebaria, leria um cartaz que incitava homens de diversas regiões do mundo a participar de um torneio. Caso ele o desprezasse, não haveria nenhum problema. Mas se ele se inscrevesse... Poderia sair vencedor ou não. Se ele não saísse vencedor, não haveria nenhum problema mas se ele triunfasse seria o começo de uma série de infindáveis encruzilhadas. Se fosse o tempo em que troféus e honras traduziam a culminação das concorrências, não haveria nenhum problema. Mas se estivéssemos no medievo e ainda existissem damas a serem heroicamente conquistadas, seria o início de um doce inferno: ele teria que, como Ivan no conto russo, montar no cavalo castanho e resgatar a princesa da sua torre de marfim. Se no ato do salto ele não conseguisse alcançar seus lábios, nada poderia nos preocupar e nem a ele. Mas se no momento em que o robusto cavalo alcançasse os céus ele pudesse roubar-lhe um beijo, oh céus, oh purgatório, teríamos dois problemas: o beijo poderia ser fulminante, imediato, uma flecha de Cupido dourando seu coração ou apenas uma borboleta agradável, parda de azul. Se fosse nuvem e azul, ah, não haveria nenhum problema, mas se ela olhasse pra ele e ele olhasse pra ela e fosse aquele olha e reolha e o tempo parasse e os olhos de ambos brilhassem ao mesmo tempo, Ivan congelado e derretendo de paixão no pulo, haveria dois problemas. Ele poderia avistar seu castelo de realidades desmanchando-se no ar, cego por raios e trovões, gotas de lágrima ou tijolos caindo do céu, tomar suas insígnias agora tornadas pedras – e não haveria nenhum problema além de uma brutal melancolia. Se ela fosse a sua Mulher-Estrela, aquela que tem em si todos os atributos monstruosos da fêmea perfeita e selasse o seu destino com o amor ideal, tudo estaria bem na vida do nosso herói. Mas como a literatura imita a vida, e vice-versa, versa-se a vida, é possível que essa mulher se desdobrasse em duas: uma, a doce pura e casta Sofia, a fada da fonte que não lhe daria filhos. Ivan se entristeceria por não deixar descendência mas teria a vida digna de um rei e uma mulher fiel. Mas caso fosse a terrível Alexandra, a princesa negra ... Pobre Ivan. Além de tripudiar da sua louca paixão e corneá-lo com os mais reles súditos ainda lhe daria muitos filhos. Se dessa maldita união nascessem apenas meninas, as deusas de um eterno Olimpo ainda poderiam contemplar-lhe com alguma felicidade. Mas se nascesse um menino, ah Ivan, sua sina seria assinalada com pior dos sofrimentos. Se o escritor, comovido com o destino do seu personagem, pudesse ainda mudar o curso da história, não, não haveria nenhum problema. Ele interromperia o fluxo da imaginação virando-se para o outro lado na cama finalmente conseguindo dormir e teríamos mais uma história sem fim. Mas se o autor dessa sucessão de acontecimentos se visse preso no enredo e fosse obrigado a levantar, ir até o computador e mudar tudo, poderia resolver que não estaríamos mais no tempo de castelos, princesas e cavaleiros: Ivan entraria no carro e tudo seria diferente – e até aí, nenhum problema. Mas se um pernilongo, um terrível pernilongo, zoasse na cabeça do nosso demiurgo e o deixasse com um bruto mau humor, de nada adiantaria, tudo seria em vão - Ivan teria que assistir seu filho oscilar frente ao corvette coupê e um cavalo.
Zoe de CamarisAbril de 2004