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São inúmeros os significados contidos no arquétipo da “Mãe”. A fertilidade, a concepção, a gestação, o parto. Em seu bojo, cornucópia, a grandiosa idéia da Natureza e a mudança das estações. É a eclosão de flores na primavera, os frutos maduros no verão, os tapetes de ouro quando caem as folhas, a geada no inverno. Sua correspondência mitológica mais conhecida é Ceres-Deméter, a que traz em si Kore e desdobra-se em Perséfone. É a tradução dos ciclos e, portanto, intemporal. Intemporal como o inconsciente, de onde brotam as imagens arquetípicas.
Na carta da Imperatriz subjaz o modelo ancestral da Mãe-Natureza. Há um diálogo direto, imanente. Seu cetro, o trono, a coroa, o escudo que contém a águia lhe entroniza o poder do feminino. A beleza e a maternidade, a regência venusiana e lunar.
O poder de expressão, o estalo criativo, talvez ainda sem direção definida. Alguns autores afirmam que o processo de gestação estaria mais explícito na Sacerdotisa e que só eclodiria na Imperatriz. O arcano 3 contém o arcano 2, se nos detivermos na idéia de “trunfo” – o arcano seguinte combate e vence seu predecessor.
Ali está a idéia de Amor, da generosidade. Mal aspectada pode indicar a face negra, a Mãe Terrível, o abuso do poder então matricêntrico - a manipulação, a frivolidade e a vaidade exarcebada. Intensa como a Natureza. É a tempestade e o cataclisma, literal e metafórico. Há ambigüidades, enigmas na imagem da Senhora dos Tempos, assim como em todas as cartas que foram pintadas e idealizadas pelo lampejo de um mestre e a pena de uma mulher.
Thoth Tarot
Quando pensamos em um outro elemento da carta, o número, e temos em mente que o 1 é o princípio criativo e masculino e o 2 o passivo e o feminino, o 3 nos traz, imediatamente, a idéia de nascimento, da união realizada, de uma realidade nascente - o fruto, a criança. Para Crowley, para Waite, para diversos comentadores do Tarot de Marseille, na explanação de G.O Medes, entre outros, para economizar citação.
O que poderia indicar que o fruto no arcano III não está disponível seriam as cartas com que a Imperatriz dialoga e a referência tomada da pergunta feita. Nunca só ela mesma. Pois não há “tempo”, como assim o conhecemos, em uma carta de Tarot. Não há presente, passado e futuro no inconsciente. Nós, tarólogos, somos quem o delimita.
No Carro há o homem que decide ir, mas que talvez ainda não tenha ido. Posso ver também Aquiles correndo em sua biga. E posso observar também os cavalos de força desgovernados. Quem dirá se o Condutor da Carruagem foi bem sucedido, será quem dialogará com ela. Há sintaxe no Tarot. Como há paradigmas.
Estávamos discutindo Arcanos Menores. A Imperatriz só compareceu aqui porque a afirmação de que no arcano III o fruto não está disponível me soou estranha. A Imperatriz sabe que o fruto acontece em todos os tempos.
Em uma carta de Tarot está contida, em símbolos, uma parte do mundo. Ali não há um só conceito. Assim como na Confeitaria das Famílias em Curitiba. A decoração em estilo espanhol não traduz um conceito mas sim um apanhado de memórias da proprietária: cheiros, cores, clima. Sua Espanha particular. Não UM conceito.
Se o conceito é o que norteia a imagem... Será o Tarot uma obra de Arte Conceitual? Legal a idéia.
Como o Tarot é um código aberto dentro de uma estrutura fixa, podemos criá-lo. Não seria possível resumir e transformar arquétipos em conceitos? Creio que, no mínimo, quase tudo se perderia.
Na definição de Sol LeWitt, “na Arte Conceitual,a idéia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista usa uma forma conceitual de arte, significa que todo planejamento e decisões são tomadas antecipadamente, sendo a execução um assunto secundário. A idéia torna-se na máquina que origina a arte”.
O resultado final na arte conceitual é dispensável. Vale a idéia, que deve gritar de dentro da obra de arte. Que poderia ser traduzido facilmente em palavras com o recurso de metáforas e da ironia. Mas o suporte aqui não importa.
Uma carta de Tarot não pode ser captada assim. Arquétipos não podem ser contidos em palavras. Ou melhor, não num só recado. A imagem, com sua abertura sincrônica, talvez capture melhor o modelo ancestral pela sua intrínseca simultaneidade.
Definitivamente, Tarot não é Arte Conceitual. Mas está imerso até a cabeça na cultura pop. Nada há o que fazer quanto a isso, só lançar mão de nossos critérios para escolher o que nos agrada ou não - Kelly Key não destruirá os futuros amantes de ópera. O pagode não invalida a música clássica. Quadros de pinheiro pegando fogo, o grito do kitsh, não abolem a existência do Museu do Louvre. O Horóscopo não invalida a Astrologia. Por isso não temo o Tarot das Fadinhas, do Papai Noel, dos Gnomos Coloridos e de Outras Realidades.
Certos tarots são brinquedos e não armas. É a diferença entre um revólver de sabão e a nitroglicerina pura.
O que eu também não entendo é o seguinte: porque usar Tarots de casais transando e crianças correndo se a imagem, nesses casos, se colocam contra o “conceito” no qual se valida, se crê, se acredita?
Se render-se a imagem é coisa de tarólogo dionisíaco, sou dionisíaca. Mas reconheço as divisas: não concebo ler o Housewives num templo, assim como não leria o Thoth numa mesa de bar. Limites. Sou dionisíaca, não surrealista.
Conceitos, imagens, arquétipos, símbolos, números estão fundidos em cada carta de Tarot. Só são separados para que se possa estudar o fenômeno, no melhor estilo século XIX. Os de vertente holística achariam isso um absurdo já que a imagem deveria ser apreendida integralmente, de um só golpe. Não deixa de fazer sentido. Imagens podem ser a mola propulsora de conceitos. Imaginemos o pintor que divaga frente ao mar e deixa sua mente livre para que o pincel traduza emoções, sentimentos e percepções em uma imagem única e intransferível. A imagem (não estou falando do símbolo, que é motivado) não nasce necessariamente de um conceito.
Diz Ernst Cassirer que a gênese das palavras vem de imagens que iluminam, deuses fugazes e instantâneos.
Definir essências pode ser um sinal de agonia. Foi isso que Jor-El fez quando Krypton ia acabar. Há que se saber quando colocar borboletas em caixinhas. Mitos são destruídos porque seu tempo acabou e não há mais quem os transmita. A estabilidade é mantida pelo câmbio, lembrando Crowley e também o chavão básico da Roda da Fortuna: a única coisa que permanece é a mudança. Sem a troca, o ponto que aumenta o conto, acabou-se a história.

Sue Williams
E a História do Tarot é uma história de transformações. Quem tem a razão? Aliette, o maluquete, Eliphas Levi, o monstro da magia, Crowley e seu novo Aeon? Cadê ela, a verdade? Eu acho que vi um gatinho...
O que seria então desconstituir imagens num universo de imagens? Houaiss: desconstituir é desfazer, tirar os “poderes outorgados”. Em bom português, tirar o poder da imagem. Um ato ousado. Que relevo tanto que estou aqui escrevendo uma terceira postagem - não há como desconsiderar essa idéia, no mínimo, polêmica.
A arena, Marcelo, possivelmente não foi bem escolhida - no que me desculpo. Talvez o debate caísse melhor numa lista de discussão ou no orkut, como dita a silenciosa regra que desobedeci. Assim, eu não teria causado a impressão de estar jogando um colega iniciante (que não é iniciante) na cova dos leões. O fato de ter colocado a minha opinião no blog também pode ter sugerido que eu tentei me promover em cima de sua idéia ou detonar contigo. Pra quem não me conhece.
Primeiro, que não estou com essa bola toda – estamos equiparados em idade e conhecimento. Troca de iguais. Segundo, que não estou participando de nenhuma lista e de nenhuma comunidade, nem mesmo as minhas.
Este é o meu espaço, o único em que encontro tempo para escrever e assim mesmo de vez em quando. Então, talvez tenha sido um ato leviano transportar uma discussão que rolava no messenger para o meu espaço. OK. Perdoem-me todos, minha idéia não foi expor a pessoa do Kirtan, mas sim as idéias, nossas velhas conhecidas. E me senti no direito de fazê-lo porque houve aquiescência entre as partes.
Acredito, e sempre irei acreditar no debate de idéias de forma transparente e construtiva, tão importante quanto as próprias idéias. Assim aprendemos, tanto no sentido de conhecer o que não sabíamos, como de reconhecer o que já sabíamos. O problema é que eu me animo com a contenda e entro valendo. É a minha forma de expressão - quanto a isso, não há nada a fazer. Ou se aprecia ou se lamenta.
E é claro que o Marcelo considera a imagem. Nossa conversa e os insights que teve ao analisar o jogo de posturas presente na imagem do Enamorado, foi esclarecedora. Um tarólogo precisa ser apaixonado por imagens, condição sine qua non para o trabalho. Isso é inquestionável. E Kirtan usa bem a imagem, o que se percebe claramente através do flyer que montou para seu Workshop, uma crítica sutil e muito bem montada ao meu post sobre o tédio. Me senti feliz por inspirar o desenvolvimento de um WS – e podem ter certeza que não estou sendo irônica, mas sincera. O cara é bom, não vou dar murro em ponta de faca. Desafios me inspiram e me incitam. E há o direito de resposta.
Reconsideremos então, Marcelo e todos os envolvidos na discussão, a montagem da arena. Parece que a montamos juntos. Não há cova dos leões.
Só para finalizar e voltando às questões teóricas, pois são elas que aqui importam, quando o Kirtan usa o título “Desconstituir Imagens”, quando afirma que “quando se trata de menores só existem conceitos” e que na Imperatriz o fruto não está disponível, eu continuo discordando e argumentando. Lembrando que objetivo de uma discussão não é convencer ninguém a nada, apenas espraiar diferentes pontos de vista que podem vir esclarecer questões importantes sobre esse baralho enigmático, sempre surpreendente e perplexo chamado Tarot.
Abraços para todos,
Zoe de Camaris